‘Usava outro bairro para esconder onde moro’, diz repórter da Agência Mural
Eu mudei para a Jova Rural aos 15 anos. Na escola, quando falei para colegas de sala o nome do bairro, uma delas disse que eu iria morar na “zona rural”. Senti vergonha de trocar o meu antigo e estruturado bairro de Vila Medeiros, também na zona norte.
Antes de ser correspondente do Mural, raramente eu dizia para as pessoas que acabava de conhecer o nome do bairro onde eu morava, e ainda moro. Mas desde 2011, eu falo: Jova Rural, conhece? Não conhece?! Então, eu sou correspondente de lá. É um bairro novo, que fica perto do bairro do Jaçanã…
Eu sempre usava o bairro maior e mais próximo como um escudo para a pergunta sobre onde mora. Dizia sempre o nome do Jaçanã. E com simpatia as pessoas lembravam da música Trem das Onze, de Adoniran Barbosa: “Moro em Jaçanã, se eu perder esse trem, que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã”.
Se a pessoa reconhecia o Jaçanã, eu dizia que morava um pouco acima. Eu até falava o nome da Jova para quem conhecia, mas não me dava ao trabalho de explicar para todos. Principalmente para os meninos. Será que ele vai querer me ver de novo se souber onde eu moro? Eu me perguntava.
Você já parou para pensar na influência da mídia, e até mesmo da música para criar e reforçar estereótipos sobre lugares e pessoas? Na época em que eu me mudei, uma das poucas músicas que ouvi o nome do meu verdadeiro bairro chamava “Toda puta mora longe”. A letra diz: “Quem dá ajuda é pai, quem faz caridade é monge, não se meta a levá-la para casa. Toda puta mora longe”.
No final da música, o vocalista dizia vários nomes de bairros da periferia, Jova Rural se não me engano era o antepenúltimo. Hoje, quando eu conheço as pessoas e falo da Jova Rural, dou esses exemplos para mostrar como as representações mexem com nossa autoestima, como moradores, mulheres ou simplesmente pessoas.
Já a música “Mágico de Oz”, do Racionais, coloca os dois bairros no mesmo refrão: “Jardim Filhos da Terra e tal, Jardim Hebrom, Jaçanã e Jova Rural (…)”. Assim como ela apresentava apenas uma das várias facetas do meu bairro, o jornalismo me mostrava apenas deslizamentos de terra, mortes e acidentes. Só haviam referências negativas, parecia um pedaço de terra onde nada bom acontecia. O jornalismo só chega para mostrar o sangue, pois sorrisos não vendem jornais.
Ao me tornar correspondente, também criei uma página no Facebook sobre o bairro. A ideia é mostrar um outro lado que a grande mídia nunca se aproximou. O lado engraçado, inusitado, de um lugar com nome rural, que tem vacas, cavalos e até galinha nas ruas.
Temos muitos problemas, sim, mas não nos reduzimos a isso. Temos trabalhadores, artistas, donas de casa, estudantes, assim como em qualquer outro lugar de São Paulo.
Cada curtida na página me mostra que nós não temos mais vergonha de viver onde vivemos. Há vida inteligente e pulsante por aqui. Não queremos sair, queremos que a estrutura presente em outros bairros mais centrais chegue até nós. Quando você faz o nome de um bairro aparecer nos buscadores da internet, você vira referência e recebe até e-mails pedindo ajuda para trabalhos de escola sobre o bairro.
Quando algum carro de reportagem vinha até aqui para fazer alguma matéria, os vizinhos me perguntavam desconfiados se tinha acontecido alguma coisa, aguardando por uma resposta negativa. E eu dizia: “Aconteceu algo, sim. Eu moro aqui, eu sou jornalista e estou fazendo uma matéria sobre a região.”
O Mural me proporcionou fazer parte dessa mudança, de mostrar um bairro além de suas mazelas. Mostrar suas esperanças e suas cobranças em fazer parte da cidade de forma igual aos outros bairros.
Aline Kátia Melo, 33, é correspondente da Jova Rural
alinekatia.mural@gmail.com
Ótimo texto! Gostei!
Verdade,as pessoas gostam de estigmatizar sem conhecer!Capão Redondo é bem conhecido pelas manchetes policiais,extremo da zona sul,ninguém sabe que lá tem várias ongs e tem saraus da Coperifa ,frequentada por poetas e escritores da região.Inclusive o Mano Brow e Ferréz que já tem vários livros publicados e essa semana realizou um evento em escola do Jardim Angela com outros rapers como Criolo, Slim e Mauricio DTS #ConZSpiração!Afinal nosso país despreza a cultura,preza aparência!!!
Muralistas
Como pai de uma Muralista sinto muito orgulho do trabalho que ela realiza com esse grupo de abnegados jornalistas. Louvo a coragem e honestidade em exporem em suas matérias a dura realidade dessa grande metrópole e colocarem um jornalismo moderno, livre de preconceitos e estereótipos. Pra frente moçada.
Feliz Natal e Ano Novo,
cheio de Mural e Mulheres da Periferia