Funcionários revelam como encontraram vala de Perus que recebia mortos pela ditadura
Se hoje Perus é considerado periferia de São Paulo, imagine há 50 anos? Foi no bairro de ares interioranos da zona norte, que os militares encontraram o local ideal para esconder presos políticos mortos durante a ditadura militar. Construído em 1971, o Cemitério Dom Bosco foi depósito de 1049 ossadas. Apesar de sempre desconfiarem, o ex-administrador do cemitério Antônio Eustáquio, 68, e o ex-coveiro Lucas Oliveira*, 62, não sabiam ao certo o que se passava no local, muito menos que faziam parte da etapa final de todo um processo de repressão instalado pelo regime.
Os amigos Eustáquio, mais conhecido como Toninho, e Oliveira se conheceram quando o primeiro foi trabalhar no cemitério. Antes, Toninho já havia trabalhado no da Consolação e no da Vila Mariana. “A primeira coisa que eu fazia quando chegava em um cemitério era levantar o arquivo, os registros. Como aqui [Perus] tinha ossuário, precisava exumar e reenterrar os enterrados e tinha que constar no livro a data dos dois procedimentos. Na área da vala clandestina só tinha a data de exumação e mais nada. Aí comecei a desconfiar. Quando questionava os funcionários sobre isso, eles disfarçavam”, lembra.
A vala à qual o ex-administrador se refere foi criada em 1976 após uma tentativa frustrada de se construir um crematório no local. Sem registro nos documentos do cemitério, ela foi a solução encontrada para colocar as diversas ossadas que estavam espalhadas pelas salas de velório.
Enquanto Toninho administrava, Oliveira era quem sepultava os cadáveres. Nascido no interior de São Paulo, mudou-se para Perus aos nove anos e já nessa idade trabalhava como vendedor em um armazém. Quando o Dom Bosco foi inaugurado, ele não pensou duas vezes e logo foi trabalhar lá. Das 7h às 18h, cavava defunto, como ele dizia. O coveiro conta que os sepultamentos de indigentes chegavam a ser maiores que os comuns, somando 25 em dois dias.
“Os corpos vinham em um furgão preto da polícia civil. A maioria estava sem roupa, em um caixão sem forro, sem luxo, sem nada e muitos tinham marca de bala. Falavam que no meio desses ossos poderia ter preso político. Na década de 70, famílias começam a ir até o cemitério para perguntar sobre os corpos. Eu explicava que vinham só com um número e aí ficava difícil de localizar”, lembra o coveiro.
Uma das famílias que chegaram a ir até o Dom Bosco foi a a da professora Sônia Maria, que era militante da ALN (Ação Libertadora Nacional). Ela foi presa e torturada no DOI-Codi do Rio de Janeiro e de São Paulo. Instigado com o caso, Toninho resolveu investigar o caso dela e dos outros corpos sem o registro correto. Perguntou para vários companheiros de trabalho, mas ninguém falava nada sobre o assunto. Um dia, fora da cemitério, um colega de trabalho acabou falando da vala. Decidido a encontrar os corpos, Toninho pegou uma sonda e desceu três metros na área indicada pelo colega e confirmou as suas suspeitas.
Em 1990, após o fim da ditadura militar, a vala foi aberta. Na época, foi firmado um convênio com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que faria o trabalho de identificação dos corpos. As ossada ficaram na universidade durante 20 anos e depois foram para o cemitério do Araçá, em São Paulo. Agora, esse trabalho deverá ser feito por um centro de antropologia forense, fruto de uma parceria entre a prefeitura de São Paulo, a Secretaria de Direitos Humanos do governo federal, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Universidade Federal de São Paulo. Procurada, a SDH não respondeu sobre o número de presos políticos identificados na vala.
MEMÓRIA
Falar da ditadura militar e dos presos políticos enterrados no cemitério ainda é um tabu em Perus, mesmo passados 50 anos do início do regime e pouco mais de 40 da construção do Dom Bosco. Segundo Oliveira, peruenses como ele acreditavam na época que a polícia era sinônimo de respeito e isso permanece até hoje na mentalidade dos moradores. Para Toninho, é uma pena que não se fale muito sobre o assunto no bairro. “A história nunca morre, desde que seja lembrada”, ressalta.
*O entrevistado preferiu não se identificar.
Jéssica Moreira, 22, é correspondente de Perus
@gegis00
jessicamoreira.mural@gmail.com
Rafael Carneiro da Cunha, 24, é correspondente da Lapa
@rafaelccunha
rafaelccunha.mural@gmail.com
Esqueceu-se de dizer que o pai da criança, quem criou o cemitério foi o Paulo Maluf, obra de Maluf como ele gosta de afirmar.
obrigado por mais um blogue informativo. Onde mais posso obter esse tipo de informacao escrita com tal metodo? Eu tenho um risco que eu estou simplesmente operando agora em diante, e eu tenho vindo a olhar para fora para tais informacoes.
Acho que o mais correto seria eu dividir o texto em alguns outros, mas na correria, acabei me empolgando e “socando” tudo num só rs.. Mais pra deixar documentado e depois fazer o podcast. Valeu por ter lido ele todinho. Abs.