‘O mês de novembro é quando nós, artistas negros, trabalhamos muito’

“É muito doido isso, mas é quando realmente tem trabalho”, afirma Dica L Marx, 37, sobre o Dia da Consciência Negra, comemorado nesta segunda-feira (20).

Cantor, compositor e instrumentista, ele nasceu e foi criado no bairro de Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo. Como muitos artistas, utiliza da música como um instrumento de multiplicação da cultura negra.

No entanto, sente falta de falar do processo de criação. Para ele, o artista, quando negro, é sempre levado a abordar questões sociais. “Eu gosto de falar de política, porque é importante, mas tem esse outro lado da produção, de onde vem o processo artístico que muitas vezes fica de lado”.

É por essa questão, por exemplo, que ele lamenta a maioria dos convites para apresentações acontecerem, em geral, apenas no mês da Consciência Negra. “Durante todo o mês de novembro é quando nós, artistas negros, trabalhamos muito”.

Formado na Universidade Livre de Música, Dica também é educador e cursou pedagogia na USP. “Sou de uma geração que pegou esses programas sociais de acesso. Então, talvez se não fosse essa estrutura, nem faculdade tivesse feito”, diz.

“Eu tinha que atravessar a cidade, dava duas horas e meia [para ir às aulas]. Lembro de ter dia que eu passava mais tempo no trânsito do que tendo aula”, conta sobre os desafios que enfrentou durante a formação acadêmica.

Um dos motivos que faz com que Dica não busque um mestrado ou doutorado, no momento, é essa trajetória e o racismo estrutural. “A meritocracia vai dizer que qualquer um pode entrar, que tudo é igual para todo mundo, mas a gente ignora muito esse ponto de partida, que às vezes é bem diferente para a maior parte da população”, afirma.

Essa vivência reflete no trabalho que desenvolve. Em sete meses, ele montou o espetáculo MemoriÁfrica, que trata de denúncias de violências geradas por conta do segregacionismo. “É um show que trabalha com a ideia de valorizar as pessoas, espaços, entidades que fortalecem suas identidades negras e permitem que outras pessoas se identifiquem e possam ir curando as feridas que o racismo gera”.

O processo dele para enxergar a música para a valorização da cultura negra não foi do dia para a noite. Desde cedo, as letras sempre o impactaram e o conectaram com ela. Durante muito tempo, ouvia rock, “que é música negra, só que ao decorrer do tempo foi apropriado e muitas vezes esvaziado”, conta.

Ao estudar violão popular na universidade, foi o chorinho que o aproximou da tradição negra.

“No processo de construção de um trabalho de que a negritude é o centro, a [minha] musicalidade se enriqueceu muito. O violão que eu toco hoje é bem diferente do violão que eu tocava anos atrás por conta disso, tem a questão da rítmica”.

Ao citar influências e nomes da MPB como Luiz Melodia, Itamar Assunção e Tim Maia, pontua o quanto a questão racial os colocaram em uma categoria que chamam de “maldito”.

“Eu acho que tem esse lugar do ‘animador cultural’, sabe? E quando damos esses títulos tornamos menor a obra. Eu acho que o Itamar numa sociedade que valorizasse a arte realmente ele seria um dos maiores. As obras, criações e produções do cara são absurdas. Mas num país como o nosso, que é racista e classista, não vai ser [um dos maiores]”.

Em “MemoriÁfrica”, Dica, não à toa, usa elementos –como os Orixás, capoeira e o samba– em busca de uma identidade que durante muito tempo foi censurada. “Conhecemos pouco nossa história”.

 

Karol Coelho é correspondente do Campo Limpo
karol.mural@gmail.com

Wallace Leray é correspondente do Grajaú
wallaceleray.mural@gmail.com

Comentários

  1. Não vejo melhora, passei do 54 de idade.
    Não há melhora significativa para nós negros, o racismo só aumenta.

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