Dona Jacira: artista da zona norte de SP é mais que ‘mãe do Emicida’
André Santos
Paula Rodrigues
Dona Jacira sempre morou na zona norte de São Paulo. São mais de cinquenta anos entre o Jardim Ataliba Leonel e o Jardim Fontalis. Agora é moradora do bairro do Cachoeira. Em um lugar onde as ruas têm nomes como Minas Gerais e Goiás, na casa de Dona Jacira está guardado um mundo inteiro.
Tentar definir Jacira não é uma tarefa fácil. “Sempre que vou em algum lugar dar palestra, as pessoas me apresentam como ‘dona Jacira, a mãe do Emicida e do Fióti’, como se fosse só isso que eu faço da vida: ser mãe de artista famoso”.
Em seu cartão de visitas, abaixo de seu nome, encontra-se uma única função: artista plástica. “Mas esse termo não me define por completo”, ela trata de dizer com rapidez ao entregá-lo.
Resumidamente, ela pinta, borda, tece, escreve, dá oficinas e palestras. Toca na bateria de um bloco de carnaval Afro Afirmativo, é figurinista, produz bonecas, faz pães artesanais, cultiva plantas que utiliza na produção xaropes, licores, incensos, geleias e sabonetes feitos por ela mesma. Além de cuidar diariamente de uma ampla horta orgânica de onde saem legumes, verduras e seus incontáveis pés de morango.
Entrar na casa de Dona Jacira é se perder. As obras criadas por ela estão expostas em cada pedaço de todos os cômodos, impossível dizer quantas são. Na sala, as pinturas na parede, os quadros, o teto decorado com peças que ela fez, o pequeno palco desenvolvido para futuras apresentações (e que agora serve como um espaço para bonecos que gritam ancestralidade, mesmo quando quietos em um canto). Tudo é coisa demais para absorver de uma vez só.
A consciência de que esta é uma casa na periferia da zona norte de São Paulo só volta quando a própria dona Jacira corta o silêncio para falar: “faz pouco tempo que eu descobri a África. Antes eu lia sobre e achava que era tudo fantasia. Pensava: como pode um povo passar por tanta coisa e continuar em pé? Como pode um povo aguentar tudo isso? Deve ser tudo fantasia”.
TRAJETÓRIA
Dona Jacira é uma mulher de 54 anos, que decide começar sua história a partir de quando tinha 5. Com essa idade, sua mãe a mandou para um convento. Ela diz que não consegue afirmar quanto tempo passou ali: se foram seis meses, um ano… Só se recorda que sua estadia foi muito dolorosa, vivia questionando os maus tratos das freiras, e só saiu de lá quando precisou ser internada na UTI de um hospital devido a problemas de saúde.
Aos oito, começou a fazer tricô no dedo, depois veio o crochê, que ela aprendeu com pessoas no bairro. Mas nessa fase, o que a encantava de verdade era o ciclo de vida do pé de feijão que sua família tinha no quintal. “Eu sempre ficava olhando cair um feijão do pé junto com umas folhinhas, que depois iam crescendo e crescendo… aí dava mais quatro ou cinco feijões iguais àquele que tinha caído sozinho ali”, conta. O quintal da casa de sua mãe era o único amigo que ela tinha, o único que brincava e conversava com ela.
Foi também nesse mesmo quintal que dona Jacira passava horas desenhando na terra. “Eu queria escrever e desenhar, mas minha mãe falava que isso não dava dinheiro, aí eu me virava com o que tinha ao meu redor”, relembra.
Antes mesmo de entrar na escola, já sabia ler e escrever – aprendeu sozinha. Quando iniciou os estudos, seus textos já chamavam atenção e causavam dúvidas. Segundo ela, as pessoas não conseguiam entender como “uma menina como ela” podia escrever tão bem, e, por vezes, foi acusada de roubar os textos de outras pessoas da classe.
Certa vez, na quinta série, a professora pediu para que os alunos escrevessem sobre o que eles queriam ser quando crescer. Ela conta que já estava cansada do jeito que era tratada, e resolveu escrever um texto falando que queria ser professora “para fazer com eles o que eles faziam comigo todo dia. Mas aquilo não foi um texto, foi um desabafo”.
Sua postura não foi bem vista pelos professores e pela diretora, Cecília, que, sempre quando se referia à menina, esfregava a pele. “Depois de muito tempo eu descobri o que queria dizer aquele gesto: ela se referia à minha cor. Dizia que eu era inteligente, mas… aí esfregava a pele da mão. Aí ela me expulsou da escola e disse pra minha mãe que meninas como eu não precisavam de caderno e lápis, só de rodo e balde”, lembra.
Ser mandada para um convento, e depois a expulsão da escola, fez com que a menina já não soubesse mais o que fazer da vida. Ela não tinha amigos, sentia que ninguém gostava dela em sua casa, e até seu quintal já não respondia mais suas perguntas. Decidiu então que o único jeito para dar um rumo em sua vida seria casando.
O primeiro casamento veio cedo, aos treze anos de idade. Da união com Miguel nasceram seus quatro filhos: Kátia, Tiana, Leandro e Evandro. Dona Jacira então passou a fazer faxinas para sustentar a casa.
“Era dia de Cosme/ Madrugada/ Chovia lá fora/ De repente alguém chama/ ‘Jacira, sou eu, Luiz’/ Presenti/ Miguel morreu”
Seria uma falha com dona Jacira tentar encontrar palavras melhores do que as eternizadas em sua poesia para falar sobre o momento que ela descreve como “morte e renascimento”.
Na época da morte de Miguel, Dona Jacira, aos 26 anos, já tinha abandonado a arte por completo. Começou a beber para aguentar a solidão e a angústia que guardava.
Sua situação piorou anos depois quando, por conta de problemas renais, teve que se aposentar. As dúvidas de quando tinha treze anos sobre o que fazer da vida voltaram acompanhadas de depressão e alcoolismo.
Casou-se com seu segundo marido. Logo foi trocada por outra. Para lidar com a situação, procurou ajuda médica. Dona Jacira tem a lista de todos os remédios que a receitaram na época. “Mas nenhum era suficiente. Então eu pedi um calmante mais forte para a psiquiatra e ela me disse: Jacira, eu acho que você não precisa de um calmante mais forte, você precisa de uma história mais forte”, conta.
A história veio pelo teatro. Assim como sua reaproximação com a arte. Foi onde aprendeu a contar histórias – a dos outros e a dela.
POESIA
No segundo andar da casa, a artista ainda se emociona ao encontrar um livro que fez quando se viu apaixonada por outra mulher pela primeira vez. Assistir dona Jacira ler uma poesia que ela mesma escreveu é algo tão íntimo que te deixa com vontade de pedir licença, e depois desculpas por invadir a privacidade de alguém.
A voz de dona Jacira recita versos como: “Eu fiz de mim oceano sintetizado em mar/ Que só ao seu comando seria capaz de recuar e avançar/ Deixe que a minha palavra se liberte: eu te amo”. Por fim, após o silêncio, conclui: “a gente sangra, mas a poesia sai”.
As obras de dona Jacira contam sobre ciclos, histórias que ela viu, viveu e ouviu. Tudo vira matéria prima em suas mãos. “Um dia me disseram que sacola plástica dura cinco anos. Aí eu fiz umas bolsas com esse material e tão aí até hoje. E já se passaram bem mais que cinco anos, hein?”, diz com um sorriso no rosto.
Hoje a casa de Dona Jacira é um grande atelier. A artista agora luta para conseguir colocar um elevador no local. “Isso faria o acesso a todos os andares muito mais fácil, a tornaria acessível”.
O sonho da artista é transformar o espaço em um ponto de trocas de experiências entre moradores, artistas e estudiosos, para buscar união e mais integração dos moradores com o bairro onde vivem.
“Eu já cheguei a acreditar que a gente não saía das periferias porque a gente era preguiçoso. Eu precisei aprender que não era isso: a gente é colocado aqui. Mas eu também aprendi que eu gosto de morar aqui, que eu posso melhorar o lugar onde moro, e trazer mais informação pra cá”.
A troca de experiência é realmente o modo como Dona Jacira quer empreender o seu trabalho. Mas, para ela, o grande problema é a “concorrência desleal” que limita a visão de quem mora no bairro. “As pessoas são massacradas pela violência que elas assistem na televisão. É difícil falar de outra realidade, mas eu sempre falo. Se a pessoa não quiser ouvir, de repente o filho ouve e descobre outras formas de viver, vai saber, né? A gente que é velho precisa contar essas histórias para os jovens, para eles saberem que existem outras possibilidades”, afirma.
A arte de Dona Jacira acontece em retalhos de pano, em pequenos pedaços de papel, em fragmentos de histórias… Em tudo que pode ser reinventado e transformado em algo maior. Assim como ela.
“Eu precisava preencher o meu vazio com a minha história. É isso que eu bordo, que eu pinto, que está nos meus livros e bonecas. É só a mesma coisa. Tudo isso é sempre a mesma coisa…E aí? Definiu eu?”.
Paula Rodrigues é correspondente da Vila Albertina
André Santos é correspondente do Jardim Fontalis
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