Aposentado da Brasilândia relembra trabalho nos bondes

“Aqui começa a jornada onde eu, com ajuda de Deus, conquistei tudo o que tenho hoje”, diz a frase escrita com caneta esferográfica no verso de um quadro na sala de visitas, com a foto de um jovem motorneiro e seu bonde na São Paulo da década de 1940.

O jovem que guia o bonde na foto se chama Aparício de Araújo, morador da Brasilândia, zona norte de São Paulo, hoje com 94 anos e memórias que ainda lhe fazem brilhar os olhos. Casado há 69 com Iria Araújo, 96, sete filhos, nascido na cidade de Itapetininga (SP), com apenas dez anos de idade teve que vir com a família para a metrópole por conta das mudanças no emprego do pai.

Mais tarde, aos 21, um primo mais velho lhe arrumou um serviço na Light, empresa canadense da área de energia e responsável pela instalação dos primeiros bondes elétricos na cidade.

A sala de visitas da residência de Araújo não é muito diferente das tantas outras famílias da Vila Brasilândia, bairro que viu nascer há mais de 60 anos. Porém, nela ele conserva não apenas um, mas diversos quadros com fotos de modelos de bondes, e dele próprio em seu ofício de motorneiro, e sempre que pode os exibe com prazer aos amigos que ali chegam.

Quadro de Araújo com 28 anos pintado a mão (Ronaldo Lages/Agência Mural/Folhapress)

“Quando o prefeito acabou com os bondes na cidade, acabou com a minha vida também. Como eu chorei naquele dia!”, relembra, com característico sotaque caipira, o fim paulatino das linhas que conduziu por horas a fio para dar lugar aos trólebus.

Aparício relembra que os tempos não eram fáceis, os moradores da região se deslocavam ainda na escuridão para que os chamados “Pau de Arara” os levassem ao ponto de ônibus mais próximo. Não havia outra opção para aqueles que viviam em bairros mais afastados e precisavam ir ao trabalho.

“Aqui na Brasilândia não tinha nada, não tinha energia elétrica. Como eu era funcionário da Light, fiz uma vaquinha com vizinhos e compramos o primeiro poste da rua, que era ainda de terra. Vejo que de lá para cá não o transporte público melhorou, naquela época não havia nem ônibus por aqui”, conta.

Apesar da ausência do poder público já naquela época, o aposentado expressa apego por seus líderes da classe política. “Não gostei da renúncia do Jânio Quadros, ele foi nosso padrinho no bonde. Gostava de andar com a gente, ele e o Prestes Maia. Já o Getúlio, quando dei a notícia de sua morte pro meu pai, ele caiu em lágrimas”.

Araújo no sofá da sala em que assiste aos jogos do Corinthians (Ronaldo Lages/Agência Mural/Folhapress)

Para a filha caçula e professora aposentada, Clarice Araújo, 55, o transporte motorizado e público sempre esteve no sangue da família, suas principais lembranças da infância giram em torno das viagens ao lado do pai.

“Ele trabalhava muito e nós ficávamos com nossa mãe, mas quando ficava em casa saíamos para visitar o CMTC Clube e o sítio de meu avô em São Roque. Nos dias em que ele podia descansar, vestia todos com roupas iguais e levava para passear”, relembra a filha.

FIEL

As paredes da sala de Araújo ostentam dois fascínios, um são os bondes que enfeitam quase todos os cantos, outro é o Sport Club Corinthians Paulista.

Vestido com a sugestiva versão roxa da camiseta do time do qual é fanático, Araújo aponta para o quadro mais alto da sala, o de Campeão Mundial de Clubes da Fifa, em 2012, e também menciona a saída do time do jejum de vitórias que durou 23 anos, em 1977.

“Quando o Corinthians saiu da fila, eu nem me lembro mais, só sei que foi uma festa tremenda”, reflete pausadamente Araújo, como quem volta por instantes no tempo, provando que as paixões não envelhecem e não conhecem barreiras físicas.

Ronaldo Lages é correspondente da Brasilândia
ronaldolages.mural@gmail.com