‘Gostar de moda masculina não diminui o fato de ser mulher’
Paloma Vasconcelos
Pelo menos uma vez por dia, me tratam no masculino. Uma vez por semana, sou constrangida moralmente quando preciso usar o banheiro de um shopping, de um metrô ou até mesmo de um espaço cultural.
Há um ano, eu tenho o cabelo curto. Compro roupas na seção masculina há pouco mais de dois anos. Me relaciono com meninas desde os 17. Mas nunca deixei de ser uma mulher. Apesar da sociedade enxergar de outra forma.
Por não performar o gênero que eu me identifico, o feminino, diversas vezes me tratam no masculino. Já fui chamada de ‘querido’, ‘campeão’, ‘amigão’, ‘mestre’, ‘ele’. Tudo isso em dias diferentes. Teve uma vez que fui revistada por um segurança homem na fila de um show de rap, em uma casa de show que os maiores MC’s já tocaram.
Em um festival, também de rap, a segurança feminina mandou eu ‘ir para a minha fila’ – dessa vez eu consegui avisar a tempo que era uma mulher. Teve uma vez, no banheiro de um cinema, que uma menininha de 3 anos avisou a mãe que estavam entrando no banheiro errado, quando me viu sair do local.
Aliás, banheiros reúnem boas histórias. Um dia eu estava entrando no banheiro da estação Fradique Coutinho, quando uma funcionária gritou que aquele banheiro era o feminino – eu gritei de volta falando que era mulher.
Em um espaço cultural, dentro do banheiro, uma mulher olhou com cara de assustada e me perguntou ‘você é um homem?’, precisei, mais uma vez, reforçar que não, eu era uma mulher. Tudo porque eu não me visto como uma mulher deve se vestir, pois eu não tenho o cabelo que uma mulher devia ter.
METADE DA POPULAÇÃO
Na última sexta-feira (17), houve o Dia Internacional Contra a Homofobia, que relembra os preconceitos que ainda estão presentes em diversos pontos da sociedade.
A pesquisa “Viver em São Paulo: Diversidade”, da Rede Nossa São Paulo, em parceria com o Ibope Inteligência, mostra que 51% da população já vivenciou ou presenciou alguma situação de preconceito motivada pela orientação sexual ou identidade de gênero, esse preconceito é conhecido como LGBTfobia, por atingir a população LGBT.
Me pego pensando quanto os papéis de gênero, padrão que a sociedade espera de uma mulher ou de um homem, aumentam os índices de LGBTfobia. O quanto de machismo tem nisso. Eu, por ser lésbica e não ser feminina, sou tratada como homem porque uma mulher não pode não ser feminina, aos olhos da sociedade. E olha que isso não tem nada a ver com a minha identidade de gênero (como eu me reconheço), eu estou bem sendo mulher.
Eu só não gosto de ter que performar feminilidade nas minhas roupas ou no meu cabelo. O que tem de errado nisso? Nisso, a minha orientação sexual (por quem eu tenho atração afetiva e/ou sexual) acaba passando despercebida, afinal sou lida socialmente como um homem.
Assim como no meu caso, a designer gráfica Leticia Fortunato, 23, já viveu situações bem parecidas, por não reproduzir os estereótipos do gênero feminino. Moradora de Guarulhos, na Grande São Paulo, ela conta que, ainda na infância, enfrentava problemas na escola por não expressar feminilidade.
“Toda vez, quando estou saindo do banheiro feminino, as pessoas falam ‘opa, pera, banheiro errado’. Aí elas vão para o outro banheiro, percebem que é o masculino, e voltam sem graça”, conta. “Teve uma vez que eu usei o banheiro do shopping e a funcionária da limpeza me parou, enquanto eu secava as mãos, ela disse ‘você sabe que não pode entrar aqui né, o seu banheiro fica do outro lado’. Eu simplesmente fiquei olhando por vários segundos”, conta.
Ainda de acordo com a pesquisa, 39% da população já vivenciou ou presenciou alguma situação com motivação LGBTfóbica em shoppings e comércios. Em bares e restaurantes, o número é de 38%. Já em banheiros públicos e estabelecimentos privados, o número gira em torno de 29%.
PERSONALIDADE
Fortunato, depois de tantos anos vivendo esse tipo de lesbofobia (preconceito motivado pela orientação sexual de mulheres lésbicas), usa o bom humor para lidar com a situação. “Já aconteceu de pegar o Uber e o motorista perguntar ‘foi a sua irmã que chamou pra você?’ e aí, de brincadeira, eu engrossei voz e falei que sim. Eu levo na brincadeira até a pessoa perceber que ela me chamou pelo gênero errado”, relembra.
Para Letícia, a questão tem muito mais a ver com a sua personalidade do que gênero. “Eu sou só uma garota que usa roupas masculinas, sou apaixonada por moda masculina, mas isso não diminui nem um pouco o fato de eu ser mulher e andar por aí de gravata”, defende.
A percepção da vivência nas periferias e na região central também é nítida para Karen. “Eu sinto que existe uma necessidade grande de padronizar tudo, que talvez não seja tão forte assim na periferia. Acredito que a periferia acaba sendo mais inclusiva porque é nela que está a diversidade, é lá que nasce a luta pelo grito de liberdade das mulheres”, aponta.
“A região central possui uma população majoritariamente branca, heteronormativa e de classe média, ou seja, eles são exatamente o padrão”, defende Guimarães.
Estudante de ciências do esporte na Unicamp, Karen Guimarães, 20, também já viveu situações do tipo em banheiros públicos como seguranças que tentaram expulsá-la do banheiro feminino do clube onde jogava futebol.
“E o engraçado é que, se eu realmente não fosse uma mulher e sim um homem trans eu provavelmente seria expulsa do banheiro masculino da mesma forma, né? Não dá pra entender”.
Karen cresceu no Mandaqui, na zona norte da capital, antes de mudar para Campinas por conta da faculdade. Ela diz acreditar que a televisão ainda tem muita influência no preconceito e nos padrões impostos às mulheres.
“Enquanto a televisão continuar vendendo em novelas padrões inalcançáveis de beleza, revistas e propagandas continuarem vendendo a mulher como um objeto destinado ao público masculino, e nós (mulheres) continuarmos a nos submeter a tais papeis, as coisas não mudarão”, diz. “Precisamos combater a cultura machista que insiste em padronizar as mulheres”.
Paloma Vasconcelos é correspondente da Vila Nova Cachoeirinha
palomavasconcelos.mural@gmail.com