Tradição do jongo reforça identidade negra em Perus
Era uma terça-feira, trem lotado e a chuva se aproximava. Próximo da estação da CPTM de Perus, região noroeste de São Paulo, o som dos tambores podiam ser ouvidos do começo da Travessa Cambaratiba.
A viela cheia de grafites tem como destino a Comunidade Cultural Quilombaque, que há 13 anos dissemina cultura e história afro-brasileira no bairro.
Ao chegar, as palmas ritmadas misturadas aos toques no tambor anunciavam que era ali mesmo que tinha início a prática do jongo, expressão cultural afro-brasileira típica do Sudeste que une percussão de tambores, dança coletiva e elementos que trazem a história e identidade negra presente na região.
Em Perus, o jongo se tornou uma prática constante em 2014, quando integrantes da Quilombaque intensificaram pesquisas sobre tambores e danças afro-brasileiras e entraram em contato com outras comunidades jongueiras.
“Decorar ponto de jongo é decorar memória”, explica o ator e arte-educador Valmir Santana, 28, integrante do Jongo do Coreto. “É uma experiência de inteligência social. Uma assembleia, um momento que a gente está se olhando. A ancestralidade nos traz como fazer isso, que é formar a roda, bater palma, cantar os pontos, respeitar o tambor e os mais velhos”, ressalta.
No bairro, a prática foi nomeada de Jongo do Coreto, homenagem a um coreto demolido pela prefeitura em 2009, situado na Praça Inácio Dias, principal ponto de encontro da juventude peruense.
“O jongo chega com o significado de resistência acima de tudo”, aponta o educador e integrante do Jongo do Coreto, Almir dos Santos, 31.
HISTÓRIA E IDENTIDADE
“Ô, mãe África, vem lembrar seu cativeiro. Olha só o meu tambú, como chora o candongueiro, e de tanto soluçar, soluçar vai molhar o meu terreiro”.
A letra acima, tocada hoje em dia também pelo Jongo do Coreto, é o que os participantes de jongo – jongueiros – chamam de ponto.
A tradição teve início quando os negros escravizados utilizavam o jongo como uma maneira de se comunicar com os companheiros, sem o risco de que os senhores entendessem a mensagem.
Os saberes tradicionais dos povos negros escravizados eram rechaçados pela sociedade brasileira. Mesmo antes da chamada abolição da escravidão, em 1888, as várias formas de expressão dos negros sofreram repressão direta com legislações.
Como exemplo, a lei nº 3 de 16/01/1893, do Código Municipal da antiga Vila Vieira de Piquete (que se tornou o atual município de Piquete, no interior paulista), proibiu “batuques, sambas, cateretês, cana-verde e outros”. Havia medo constante por parte dos senhores de fazenda que os povos negros se organizassem.
PATRIMÔNIO NACIONAL
O jongo foi considerado um Patrimônio Cultural Brasileiro, em 2005, pelo Iphan (Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
No processo, o órgão identificou que práticas semelhantes aconteciam em regiões onde havia algum conflito sócio-racial, como discriminação, tanto nas regiões rurais quanto nas periferias das cidades, como é o caso de Perus.
Há diversas comunidades jongueiras no Brasil. Porém, segundo estudos realizados pelo Iphan, a prática se consolidou na região Sudeste, principalmente entre negros e negras que trabalhavam nas lavouras de café e cana-de-açúcar.
Dentre as comunidades jongueiras mais tradicionais, é possível citar a Comunidade Morro da Serrinha (RJ), Comunidade da Fazenda São José (RJ), Jongo de Guaratinguetá (SP), Cunha (SP), Piquete (SP), São Luís do Paraitinga (SP) e Lagoinha (SP).
Cada território toca e dança de maneiras distintas. Perus, por exemplo, não realiza um jongo tradicional, mas tenta repassar a expressão para as crianças e jovens na periferia de São Paulo, com o objetivo de ensinar e fortalecer as identidades negras ancestrais.
“Estamos dentro de um contexto da periferia, temos que ter respeito à tradição, mas África é uma constante reinvenção”, aponta Almir.
Jéssica Moreira e João Paulo Brito são correspondentes de Perus e Vila Nova Cachoeirinha
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