Em Cidade Tiradentes, jovem transforma separação dos pais em livro de poesias

Giacomo Vicenzo

Em um apartamento da Cohab em Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, Lucas Lins,20, passa cuidadosamente a agulha com o barbante por entre a dobradura das folhas sulfites impressas. À mesa, um vidro de cola e uma lâmpada ajudam no início de uma produção literária caseira.

Ali, começou a escrever textos que levaram ao livro “Declínio & Esplendor da Bicicleta”, título inspirado em “Esplendor e Declínio da Rapadura”, de Carlos Drummond de Andrade. Ao todo, foram 92 obras produzidas.

A aproximação com a poesia ocorreu após um momento delicado vivido pela família, quando em fevereiro de 2016 o pai, Artur Lins, deixou a casa.

“A primeira vez choramos muito, nos abraçamos”, diz Lucas sobre a partida a prestações. Artur voltou para pegar outros pertences. “Nas outras que ele voltava para pegar o que sobrou foi apenas silêncio”, lembra.

Lucas seguiu morando ao lado da mãe, Marilene Lins, no apartamento da família.

Lucas montou 92 livros com as poesias que escreveu (Acervo Pessoal)

Além da separação dos pais, a coletânea de poesias conta com versos sobre a busca de emprego, ter chegado aos 18 anos e a reprovação em vestibulares.  

“Narrei acontecimentos que vivi em 2016, época que estava sem emprego, fui reprovado em todos vestibulares e meus pais se divorciaram. A arte foi meu alicerce para lidar com os conflitos”, desabafa Lucas.

A obra gira em torno da ligação dele com o pai. “Ele sempre chegava de bicicleta às 20h e todos os dias neste horário eu ouvia as correntes da bicicleta na porta, mas nem ele, nem a bicicleta estavam lá”, lembra Lucas.

“Desde os 5 anos eu andava na garupa com ele. Foi um meio de conhecer o bairro, ele foi meu guia e a bicicleta nosso meio de transporte. Eu nunca aprendi andar sozinho nela”, comenta.

Crescer sem o pai presente no lar é a realidade para 27% das famílias paulistanas, de acordo com a pesquisa “Viver em São Paulo: Mulheres”. A situação foi vista por Lins no bairro.

“Sou um privilegiado porque a maioria daqui cresceu sem pai, sem nenhuma figura masculina em casa. Meu pai sempre foi presente”, admite Lucas.

Lucas durante a infância andando com o pai (Acervo Pessoal)

ENTRE VERSOS E QUEDAS

No fim de 2016, na noite de Natal, a primeira que Lucas e a mãe passavam sem o pai, havia uma mistura de missa do galo, ceia, champanhe, baile funk na rua e melancolia dentro de casa.

A tristeza foi quebrada pelos passos do pai à porta do apartamento. Ele iria passar o Natal com a família. No começo do ano seguinte o casal reatou o relacionamento.

O pai e a bicicleta estavam de volta. “Foram 20 anos juntos, foi a quebra de um ciclo, é como iniciar tudo de novo para eles”, confessa Lucas.

A publicação do livro veio somente neste ano, após a reconciliação, mas serviu como um diário de bordo do período.

Lucas compara o divórcio à consequência de quedas, assim como as que acontecem a quem está aprendendo a andar de bicicleta, ou aos mais experientes, que também se desequilibram e caem.

PERDA
A arte de perder não é nenhum mistério
Estou cheio do vazio ocupando o fraterno
Falo sobre acordar às nove
pensando ser doze
por inocente engano
de quem quer te ver de pé.
Seus gritos para reduzir tempo no banho
Me fazia dono de toda água do mundo
Após amistoso no super star soccer
Galfano descansava na padaria
Fizemos figa antes do centésimo do Rogério
Você agradecia por eu ser tricolor
A arte de perder não é nenhum mistério
Mistério é a hora da perda
não me dou bem com enigmas.

“Conheci o Lucas na Escola Oswaldo Aranha na Cidade Tiradentes. Ele disse que gostaria de participar do sarau que aconteceria na escola. Ofereci alguns textos, mas ele disse que tinha um poema”, lembra Edson Machado, 48, professor de língua portuguesa.

“Nós, professores, estamos acostumados a ler poesias de alunos. Geralmente são simples, mas o texto dele era muito bom. Havia uma poética madura e profundidade”. 

Com a conclusão do ensino médio, o poeta retornou às escolas em que estudou no bairro para distribuir os livros e apresentar seus poemas aos alunos.

“Eu vendia muitos livros quando estava desempregado, cobrava em média R$ 10. Mas nas escolas eu sempre distribuí de graça. É uma forma de mostrar outro lado da periferia. Os alunos vendo alguém que escreve perto deles é um incentivo para que escrevam também”, comenta Lins.

Há seis meses, Lucas conseguiu um emprego na área de telemarketing e planeja ingressar em um curso superior de história ou sociologia. Ainda participa de saraus e segue escrevendo. 

“Uma vez eu estava no ponto e dois meninos me abordaram e falaram que leram o livro da bicicleta, disseram que gostavam de rimar também”, conta. “Muitos querem se tornar um best-seller, mas se a galera daqui não puder sentir e chegar no que escrevo, para mim não vale de nada, minha missão é essa”.

Giacomo Vicenzo é correspondente de Cidade Tiradentes
giacomovicenzo@agenciamural.org.br

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