Animação dirigida por morador de São Bernardo concorre em festival na França
Jariza Rugiano
No lugar de falas, os sons de uma cidade ajudam a compor a paisagem e a narrativa de uma história com personagens que se comunicam apenas por gestos e expressões faciais.
Desse modo, o curta-metragem de animação “Linha” apresenta dois homens de uma mesma comunidade e que não se conhecem até que as vidas deles se cruzam de forma inesperada.
“O fio condutor do curta é o racismo estrutural [forma como esse preconceito é naturalizado na sociedade] e como ele impacta a vida de um homem negro da periferia, como eu”, afirma Francisco Lira, 27, diretor e roteirista da animação que tem 3min12.
O trabalho concorre nesta semana em categorias do festival francês Concours de Courts e do prêmio pernambucano Curta Taquary.
“A comunidade do curta é baseada num grande centro urbano, como São Paulo, com recortes das vizinhanças, minha e de cada integrante da equipe que fez parte da produção”, ressalta.
“Linha” é a obra audiovisual de estreia de Lira, morador do Jardim das Orquídeas, em São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo.
Formado em Rádio, TV e Internet pela Umesp (Universidade Metodista de São Paulo), o diretor diz acreditar que um dos interesses desses eventos pelo curta-metragem é a narrativa por ambientação sonora e gestos. “Não ter falas foi um aspecto que nos atentamos muito na hora de fazer. Isso torna o filme compreensível em qualquer lugar, é uma coisa enriquecedora enquanto produto audiovisual”, destaca.
Além de roteirizar, dirigir e finalizar, Lira dividiu etapas da produção do curta-metragem com Isabelle Puertas, moradora do bairro Jardim Ana Maria, em Santo André, Iago Ferreira, da Mooca, e Rogério Martins, morador da Aclimação em São Paulo.
Os integrantes também trabalharam na parte da cenografia, produção, animação, som e storyboard, processo pelo qual se organiza a história em quadrinhos para imaginar cada quadro estático antes de ganhar movimentos.
Inscrito em mais de 10 festivais, “Linha” levou oito meses para ser feito. O curta foi finalizado em dezembro de 2018 como o TCC (Trabalho de Conclusão) do curso de Animação do CAV (Centro Audiovisual) de São Bernardo do Campo.
Após a passagem pela temporada de festivais, a equipe pretende disponibilizar a obra em plataformas como o YouTube.
Entre as técnicas adotadas no curta está a tradigital, a qual explora a animação frame a frame feita por computador. Para chegar ao resultado e fluidez nos personagens, foi utilizada a rotoscopia, que consiste em “desenhar por cima” de imagens ou fotografias feitas pela equipe.
“Por mais que eu tenha sido o roteirista, toda uma discussão foi feita entre nós, do grupo, para encontrar a melhor forma de abordagem. Acaba tendo uma vivência coletiva e acreditamos na necessidade de contar essa história”, diz Lira.
O apoio para concretizar o curta-metragem veio da estrutura e da orientação dos educadores do CAV. Quando necessário, o grupo adiantava algumas etapas do trabalho em casa.
O grupo também economizou para fazer o trabalho, porque boa parte das cenas foi feita a partir de fotos captadas previamente pela equipe, servindo de base para a animação.
PAIXÃO PELA ESCRITA
Lira se interessou pela área audiovisual a partir do texto. “Sou apaixonado pela escrita. Eu me impressionei primeiro com a escrita audiovisual, por causa de alguns roteiros de séries e filmes. A possibilidade de criar algo do zero, construir uma obra e levar as pessoas a refletir sempre me atraiu”, descreve.
Atualmente, ele trabalha como motion designer e editor de vídeos. A respeito da dificuldade em trabalhar com o audiovisual, Lira indica o apoio de ações afirmativas: a bolsa integral do Prouni (Programa Universidade Para Todos) na faculdade e cursos gratuitos como os do CAV.
“Mas muitos cursos, exposições e mostras estão distantes geograficamente das periferias, além de serem caros. Junto com a dificuldade financeira e de acesso, tem a falta de fomento às artes. O estímulo à cultura é essencial e também precisa ser feito nas bases da sociedade”, complementa.
FESTIVAIS
A animação “Linha” concorre a melhor filme da Mostra Dália da Serra, competição do 12º Curta Taquary que premia filmes feitos em oficinas ou cursos livres de audiovisual.
O festival é realizado no agreste pernambucano, na cidade de Taquaritinga do Norte, e a organização forneceu convite, hospedagem e alimentação para a estadia de Lira, para ele assistir ao resultado no sábado (27).
Já o 16º Concours de Courts, festival em Toulouse, na França, será acompanhado a distância.
A obra é uma das 19 selecionadas entre os 470 curtas inscritos e concorre nas categorias Melhor Curta Internacional, Prêmio Especial do Júri e Curta do Coração do Público. O resultado está previsto para sexta-feira (26).
“É uma honra receber essas indicações. É muito bom ter o reconhecimento com um produto de relevância social”, destaca Lira.
Além de se aperfeiçoar profissionalmente, ele pretende passar o conhecimento audiovisual adiante e dar aulas. “Se algum dia for possível inspirar e ver mais pessoas de periferia, como eu, chegando em festivais e conseguindo expor a arte e a verdade delas, vou me considerar extremamente realizado”, conclui.
Jariza Rugiano é correspondente de São Bernardo do Campo
jarizarugiano@agenciamural.org.br
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