Mães indígenas se tornam líderes de aldeias no extremo sul de São Paulo
Luana Nunes
Giselda Pires de Lima, 38, percebeu desde jovem que dentro da aldeia onde vivia havia vários problemas. Porém, era pouco ouvida sobre o que pensava. “Eram sempre homens resolvendo tudo. Quem tomava todas as decisões eram eles, sem nem entender as dificuldades que as mulheres tinham”, afirma.
Índia nascida e criada na Tenondé Porã, uma das comunidades do povo Guarani Mbya, em Parelheiros, extremo sul de São Paulo, ela atuou para mudar esse cenário. A solução foi a criação de uma nova aldeia, a Kalipety, na qual é uma das principais lideranças.
Giselda, também conhecida como Jera em guarani, é um dos exemplos das mães indígenas que buscaram o papel de liderança para defender os direitos das mulheres índias.
Mãe de dois filhos, ela enfrentou resistências. “Denunciei violência contra mulheres na frente de todo mundo e encarei os mais raivosos. Alguns deles se juntavam para me enfraquecer, mas eu não deixava”, relembra. “Ainda assim tive muito apoio dos que entendiam que uma mulher ajudaria a trazer soluções que eles não sabiam”, conclui.
Apesar de “nova”, a aldeia Kalipety mantém firme vários aspectos culturais, mas com algumas mudanças. Em especial, a política interna do espaço é definida sem a figura do cacique. “Faço parte do conselho interno, com jovens, mulheres e homens, onde todos podem falar, todos têm a mesma voz”, relata.
O conselho se reúne uma vez por mês e os líderes e caciques de cada aldeia da região se juntam para falar sobre problemas, novidades ou projetos.
TAPE MIRIM
Inspiradas na atuação de Jera, as irmãs Arayvoty, 49, e Kexeru, 47, (Laura e Beatriz), que moravam na Tenondé Porã, também decidiram conquistar um novo espaço.
Segundo Laura, a aldeia está cada vez com mais habitantes e, em consequência, com menos espaços. Hoje, são cerca de 1.500 moradores.
Elas estavam incomodadas com a falta de espaços para plantar, um dos pontos fortes da região, além das dificuldades de passar a tradição para os filhos. Ambas também são mães: Laura tem oito filhos e Beatriz sete.
“Levanta dessa cadeira e vamos fazer coisas boas por nós”, disse Jera para as irmãs. Foi aí que tudo começou.
Arayvoty chamou a irmã Kerexu e ela aceitou a ideia de procurar uma nova terra. Para encontrar o novo local, tiveram a ajuda de Jera e Thiago, um outro líder da Kalipety, que auxiliou nas buscas com um GPS para que a área estivesse dentro do território Tenondé.
No dia seguinte começaram a andar mata a dentro para achar o território que seria demarcado pela Funai (Fundação Nacional do Índio) como a aldeia Tape Mirim, processo concluído em março de 2017.
Logo de cara um problema: não tinham de onde obter água. Cavaram pela região, mas em nenhum foi possível fazer um poço. Mesmo assim, decidiram se estabelecer ali. No primeiro dia, foram 15 pessoas para ajudar a limpar e montar os primeiros barracos.
“Achei que todos ficariam, mas foi todo mundo embora e ficou eu, minha irmã e as crianças debaixo de uma tenda de lona no meio do mato, sozinhas. Tive medo”, desabafa Arayvoty.
“No terceiro dia que estávamos aqui caiu uma tempestade. Era vento, relâmpago, raio e nós duas com as crianças contra tudo isso, sozinhas sem ter o que fazer”, diz Kerexu.
Elas tiveram de mexer na lona para tirar a água que estava afundando e as crianças ficaram assustadas.
Atualmente, elas contam com a ajuda do Programa Aldeia, projeto da prefeitura que dá apoio para fortalecer a cultura do povo Guarani Mbya. Com esse apoio, conseguiram madeiras necessárias para a construção de algumas casas, a criação de um poço arteseano para abastecer a comunidade.
A aldeia Tekoa Tape Mirim completou dois anos em março e já abriga cerca de 11 famílias que chega a quase 50 pessoas.
Assim como na Kalipety, na Tape Mirim ainda existem dificuldades pela distância da cidade. Estão a 13 km de Parelheiros, bairro mais próximo com um supermercado disponível.
Ambas já conseguem plantar e consumir do próprio espaço. “A ideia é continuar caminhando para depender só da terra”.
QUEBRAR PRECONCEITOS
Antes de se tornar uma liderança, Jera teve experiência no mundo longe da aldeia. Ela começou a estudar aos 11 anos na escola do bairro e sempre esperava com ansiedade a hora de ir para casa.
Pensou em desistir, pois não sabia uma palavra da língua dos juruas (brancos na denominação guarani). Conhecia apenas o dialeto guarani, mas pegou gosto pelas salas de aula. Concluiu o ensino médio e foi para faculdade, onde se formou em pedagogia na USP (Universidade de São Paulo).
Depois de trabalhar na área da educação, resolveu abandonar as salas de aula. Pensou que não queria “ser funcionária do estado, daquele que tanto oprimiu na história de mais de 500 anos do meu povo”.
“Depois de toda a minha vivência e o impacto que a escola teve para mim, decidi então que eu ia me fortalecer na educação tradicional [dos guaranis]”, diz. “A gente aprende desde criança que não precisa saber ler e escrever para entender e respeitar a natureza”.
Jera também tem um trabalho que chama de “agente cultural”, no qual recebe a população para explicar coisas da comunidade e quebrar preconceitos enraizados sobre a população indígena.
“Gosto de explicar e esclarecer dúvidas que sempre surgem como se somos tribo. No nosso caso, não somos. Tribo é um grupo de pessoas que não tem organização social e nas nossas aldeias sempre tivemos”, afirma.
“Quanto mais gente souber da nossa história e do nosso modo de vida, melhor. As pessoas tendem a respeitar mais o que elas conhecem.”
Luana Nunes é correspondente de Parelheiros
luananunes@agenciamural.org.br
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