Liderança na Lagoa de Carapicuíba, Gleide defende permanência dos moradores
Ana Beatriz Felicio
Enquanto veste, penteia e perfuma quatro crianças em um barraco de madeira, a sergipana Gleide Faria dos Santos, 49, conta como virou líder da Comunidade Porto de Areia, favela que nasceu ao lado da Lagoa de Carapicuíba e de um antigo lixão, na cidade da região oeste da Grande São Paulo.
Além dela, o marido e as crianças, a família é composta por dois vira-latas, um galo manco (que usa uma tipóia improvisada) e um coelhinho.
Fazendo cachinhos no cabelo da sorridente Sofia, ela relembra 2005, ano em que chegou ao local com mais 30 famílias sem moradia. Eles vieram após um processo de reintegração de posse na antiga quadra da Mancha Verde, na Barra Funda, zona oeste da capital. Soube da região por indicação de um amigo.
“Naquela época haviam poucos barracos por aqui, acho que uns 10. Ainda tinha um lixão a céu aberto. Acontecia de tudo, estupro, tudo mesmo”, relembra. “Cheguei a apanhar da polícia, as pessoas não queriam que a gente ficasse. Falavam que a terra tinha dono. Mas eu não vim para tomar nada de ninguém e ficamos”.
A região fica entre a linha do trem da linha 8-diamante da CPTM e tem um longo histórico. Antes, o local já foi cava de mineração e atualmente tem sido especulado como uma possível sede da Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo).
Gleide é uma das principais lideranças da região onde estimam que vivam mais de mil famílias. Ela se divide em diversas tarefas na comunidade. “Sou a casamenteira, a juíza de paz, de separação, a advogada, a médica. Às vezes eu falo que vou embora, mas muitos falam que se eu sair, vão junto”, conta.
Ela é uma das principais vozes a entrar em contato com órgãos públicos e instituições para reivindicar direitos para a favela e também distribuir eventuais doações. Hoje, atua com mais seis mulheres na liderança da Porto, com as quais abriu uma associação de moradores.
A líder comunitária veio para São Paulo, com 14 anos, para trabalhar como empregada doméstica. “Chegou aqui, meu patrão queria ‘namorar comigo’, então eu não aceitei e a esposa dele me colocou para rua”, relembra. Acabou sendo acolhida pela mãe de uma amiga.
FAMÍLIA
Casada há 30 anos, hoje cuida de quatro crianças: Tiago*, 9, Sofia*,8; Camila*, 5, e Jéssica*, 2. As meninas são filhas da irmã dela, morta ao ser atropelada por um trem. “Antes o acesso para a favela era pela linha do trem. Tinha muito acidente. Agora eles fecharam e a CPTM controla a passagem”, conta.
No caso de Tiago, ele foi encontrado por ela ainda bebê, no antigo lixão, abandonado pelos pais.
“As crianças são minha força, são meu amor, são minha vida. Sem elas não sou ninguém”, conta Gleide. “Elas e as outras crianças da favela também, eu brigo mesmo por causa deles”.
Em uma época, já chegou a cuidar até de sete em seu barraco de três cômodos.
No sábado em que a Agência Mural esteve na comunidade, algumas pessoas colocavam cadeiras na frente dos barracos para conversar com os vizinhos. Por onde passava, Gleide ganhava um bom dia. “Aqui tem tanta história. A Porto de Areia é uma lenda, eu sou uma personagem dentro dessa novela, desse livro”.
A permanência na região tem se tornado mais difícil. Recentemente, um projeto prevê a colocação de asfalto, mas os moradores afirmam que a situação pode cortar barracos pela metade.
Embora tenham ocorrido discursos em prol da vinda do Ceagesp para o local, ninguém informa para onde serão reassentados os moradores.
Enquanto isso, Gleide e os moradores da Porto se colocam com uma decisão judicial que garante a permanência na região. “Parece que eles nos testam, pensam ‘eles não vão aguentar, então vamos fazer isso para eles vão sumir dalí’”, diz. “Mas não vamos sair”.
*os nomes das crianças foram trocados para preservar as identidades
Ana Beatriz Felicio é correspondente de Carapicuíba
anabeatrizfelicio@agenciamural.org.br
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