Na zona leste, prefeitura derruba projeto de leitura criado por catador de recicláveis
Lucas Veloso
Valdir Carvalho dos Santos, 49, mora na Vila Silvia, distrito da Penha, zona leste de São Paulo. Baiano, catador de materiais recicláveis e conhecido como Jamaica, ele não sabe ler nem escrever. Isso não impediu que criasse um espaço de leitura em um muro da rua Novo Oriente do Piauí, onde mantinha um projeto há 15 anos.
No entanto, o trabalho de Jamaica foi destruído, na segunda-feira (16). Agentes da Subprefeitura da Penha chegaram por volta das 14h e afirmaram que iam fazer a poda de uma árvore no local, segundo relato do catador.
Pouco depois, vieram outros funcionários com tratores, e ele percebeu que a intenção era levar embora uma geladeira com livros, uma televisão e mais alguns itens que o catador mantinha ali à disposição dos moradores.
“O pessoal tratou o trabalho de reciclagem como um crime. Eles apontaram foco de dengue e entulho aqui, o que não é verdade, mas se tivesse, a gente resolvia isso”, defende. “Porque quebraram o projeto cultural e levaram todos os livros e a televisão, sem chance de eu tirar?”.
Morador da região há 29 anos, Jamaica já construiu pontos de ônibus, bancos, geladeiras de livros e muitas outras estruturas comunitárias usando material reciclado.
“Sou um reciclador. Por isso, sou ignorado. Acredito que a questão é pessoal, pois não tinha problema nenhum aqui”, diz. “Do lado tem um terreno abandonado que as pessoas reclamam há anos e a prefeitura não fez nada, aí vem dizer que tem dengue aqui?”, questiona.
O espaço criado por Jamaica existia há 15 anos. Além de servir como ponto cultural para os interessados por livros, também foi usado pelo rapper Rincon Sapiência no clipe Mete Dança, lançado em dezembro passado.
Oswaldo Santana Junior, 39, o Binho, também mora na região. Ele, que conhece o catador há mais de 20 anos, discorda da ação realizada pelos agentes públicos. “É muito triste. Chegou caminhão e trator para destruir o ponto de leitura”, relembra.
“A indignação maior foi quando jogaram uma geladeira inteira dentro do automóvel como se fosse entulho, sendo que a leitura é escassa aqui na Vila Silvia”, comenta Binho, que também é pai de duas crianças frequentadoras do espaço.
Binho gravou as imagens da ação. No vídeo é possível ver dois agentes da prefeitura e quatro guardas civis. Um dos funcionários públicos ameaçou com as palavras ‘vou dar na sua orelha’, quando reclamava de ter sido chamado de mentiroso por Jamaica.
As imagens também mostram o momento no qual a geladeira foi levada e os pedidos dos guardas municipais para que a gravação fosse encerrada.
Outro morador da região, Diogo dos Santos, 28, lembra do dia em que encontrou uma Bíblia entre as obras disponibilizadas. “Encontrei o livro e estou lendo até hoje. Acho que a prefeitura deveria ‘dar uma atenção’ a ele e apoiar as ações, já que ela [a subprefeitura] não faz nada por nós”, aponta.
O coletivo Periferia Invisível, com sede na região, manifestou, por meio das redes sociais, apoio a Jamaica. “Esse episódio demonstra a grande importância do trabalho dele para a comunidade da Vila Sílvia e para toda a cidade, que tem nele uma grande referência cultural e ambiental!”.
Jamaica diz que não desistirá da atuação e procurará apoio para manter atividades no bairro.
“Tem gente que acha que sou ignorante porque eu que lhe respondo de um jeito bruto, e falo alto. Mas ignorante é quem não sabe a diferença entre um trabalho de cultura e um de limpeza.”
SUBPREFEITURA
Procurada, a Subprefeitura da Penha enviou nota no fim do dia. A gestão afirma que a medida foi necessária para “desobstrução da via” que é área pública. Diz também que o objetivo era evitar o foco de doenças e que faz parte de medidas para conter a proliferação de mosquitos.
A gestão alega que moradores reclamaram do espaço e de que não havia descarte correto do lixo. “Todos os dias são retirados toneladas de lixo do bairro e moradores denunciam que o carro utilizado pelo munícipe é visto constantemente descartando lixo e entulho pelas imediações”, diz a administração regional.
Ainda na nota, o órgão afirma que “está desenvolvendo projeto de revitalização para o local, respeitando as leis municipais vigentes. O projeto inclusive pode ter a participação do munícipe citado pela reportagem”, alega.
Sobre a destruição dos objetos de Jamaica, a gestão se limitou a dizer que “irá apurar a postura do funcionário e tomar as providências necessárias”.
Lucas Veloso é correspondente de Guaianases