Cem dias depois, Paraisópolis quer notícias além da tragédia

Vagner de Alencar

Há quase dez anos, escrevo sobre o cotidiano de Paraisópolis, a segunda maior favela de São Paulo. Tudo começou aqui no blog Mural. Assim como os outros 80 correspondentes, todos espalhados pela região metropolitana, buscamos descortinar a visão ainda estereotipada das periferias. 

Minha história com a comunidade é antiga. Em 1995, minha família se mudou da Bahia para Paraisópolis. Por lá, vivi em pelo menos cinco endereços diferentes. Todos eles em vielas que, por exemplo, sequer existem para os Correios. 

Nesta segunda-feira (9) se passaram cem dias em que uma dessas dezenas de vielas foi cenário de uma das maiores tragédias recentes do noticiário nacional. 

Nove jovens que ficaram encurralados em uma ação policial morreram pisoteados durante o baile funk Dz7, o pancadão mais famoso da cidade.

Apesar de nunca ter sido frequentador, sempre acompanhei a relação dicotômica envolvendo a festa que chega a reunir até 20 mil pessoas em um único fim de semana. 

Por consequência da tragédia, Paraisópolis recebeu todos os holofotes possíveis. Naturalmente. Acompanhar o caso e ter mais notícias do que aconteceu é sobretudo uma demanda de quem vive na região. 

Só que, se de um lado, a comunidade cobra respostas dos abusos, do outro, os moradores necessitam de outras informações sobre onde moram. 

Nos últimos três meses, porém, a cobertura da imprensa sobre Paraisópolis ainda se resume ao noticiário policial. 

Não preciso ir muito longe. Basta digitar “Paraisópolis” no campo de busca do Google; ou, para ser ainda mais preciso, procurar, via Google Trends, os termos mais associados à favela nesse período. A resposta: “tragédia”, “vítima”, “massacre” são as palavras mais associadas ao bairro. 

A comunidade, no entanto, é maior e muito mais do que um retrato trágico. Ali vivem hoje​ cerca de 100 mil pessoas, que formam em torno de 25 mil famílias, sendo 80% delas nordestinas​. ​

Uma região de quase 800 mil m² com um comércio com mais 8.000 estabelecimentos​, entre​ agências bancárias, clínicas veterinárias, casas de show​, grandes redes de produtos de consumo​.

Aqui no blog Mural, em especial, tentei mostrar a Paraisópolis que sempre esteve ali, porém descoberta, com espanto ora encantamento, por quem a via apenas pelas notícias de ocupação policial ou pela visita de celebridades ou políticos em tempos de eleição, a cada dois anos — como deve acontecer nos próximos meses. 

A comunidade onde vive o Antenor, que construiu uma casa com mais de 20 mil garrafas pet, àquela onde os moradores protagonizam uma relação de amor e ódio em relação ao baile funk da D17.

Os holofotes devem continuar sobre a resolução da tragédia recente. Precisamos acompanhar o andamento do inquérito que apura o caso.

E sobre ele: no dia 7 de fevereiro, a Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo concluiu o Inquérito Policial Militar sobre a conduta dos 31 PMs envolvidos na tragédia e pediu arquivamento da investigação. Já a Polícia Civil, por meio do DHPP [Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa], ainda investiga a operação da PM.

Apesar de não viver mais em Paraisópolis, meu vínculo por lá se mantém a partir dos familiares e amigos, e das visitas constantes. 

A luz do jornalismo precisa estar acesa para outras histórias (Vagner de Alencar/Agência Mural/Folhapress)

E para além das investigações sobre as mortes, gostaria, assim como todos os  moradores com os quais conversei, ver na imprensa a pluralidade de histórias que podem ser contadas sobre a favela.

Sobre a entrega do Parque Paraisópolis, criado em lei de 2008 e prometido pela Prefeitura de São Paulo para ser aberto neste ano.

Sobre o Niel Santos, tatuador criador do “Cicatriz de Cor” para atender, a baixo custo, clientes com cicatrizes  de violência doméstica a acidentes automotivos.

Sobre os problemas enfrentados pela população pela não canalização do Antonico, córrego que corta boa parte da comunidade, gerando alagamentos em períodos chuvosos.

As luzes do jornalismo precisam estar acesas para outras histórias, escondidas (ou não) entre tantos becos e vielas. Não só de morte. Pelo contrário. De vida. Não apenas sobre Paraisópolis. Mas de todas as periferias paulistanas, brasileiras. 

Vagner de Alencar é jornalista, cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias. 
vagnerdealencar@agenciamural.org.br