Home office é desafio para quem faz jornalismo nas periferias

Agência Mural

Anderson Meneses

Eu e todos os 80 correspondentes da Agência Mural estamos em casa. Mesmo com o latido dos cachorros, o barulho do escapamento das motos na rua, as tias cantarolando ou as vizinhas chamando nossas mães no portão para falar de plantas, continuamos denunciando as desigualdades sociais e as histórias sobre o Covid-19 pelas favelas.

Para quem já veio tomar um café na Casa Mural, onde fica nossa redação, vai concordar comigo:sou um privilegiado. Hoje divido o lar com o meu parceiro e diretor de jornalismo da Mural, Vagner de Alencar, e também com a redação da Agência.

Sempre tivemos o sonho de ter um espaço para nos encontrar, fazer a nossa reunião mensal com os correspondentes (mais conhecido como “muralistas”). Eles vêm de todas as regiões de São Paulo, mas nessas duas últimas semanas a casinha se encontra vazia.

Eu e o Vagner, que estamos acostumados a levantar da cama com a galera abrindo o portão, agora acordamos com a TV no canal de notícia. Nosso time fixo e todos os outros correspondentes estão em casa. Não nos encontramos mais pessoalmente, apenas por videoconferências.

Conversa virtual entre jornaliistas das periferias

Aliás, as chamadas ficam pior a cada dia. Diferentemente de muita gente que compartilha fotos nas festas e reuniões online com seus amigos e parceiros, a gente não consegue se ver. 

Caso deixemos a ligação com o vídeo, a conexão fica comprometida para todos, isso quando a internet não cai. 

Já estamos cansados de noticiar as questões de infraestrutura dos bairros mais afastados. Com o isolamento social, os problemas que já temos todos os dias, só ficam mais evidentes. 

Conversando com o Thiago Borges, jornalista e cofundador do Periferia Em Movimento, ele reforçou a falta de acesso à internet de qualidade compromete a rotina de trabalho, lá na zona sul. 

“Tem oscilações na velocidade ou cai em algum momento do dia. Pra quem depende de internet pra trabalhar isso gera instabilidade para cumprir os próprios objetivos.”

Nossa correspondente, Ana Beatriz Felicio, mostrou um pouco dessa situação nesta reportagem.

CONSUMO

Se produzir o jornalismo já está difícil, imagina consumir? A TV, claro, é a principal fonte de informações, porém os grupos de Whatsapp viraram uma verdadeira enxurrada de mensagens, links e relatos, além de um canal propagador de desinformação (popularmente chamadas de fake news).

Tenho tentando até separar um momento do meu dia para combater as mentiras que chegam em grupos da minha família. Divido essa missão pessoal do horário em que fico imerso no “Em Quarentena”, o podcast especial criado para notificar sobre o coronavírus, ou de mais um e-mail na caixa de entrada.

Se desconectar acaba sendo o maior desafio. Até mesmo almoçar ou se preparar para dormir está diferente, pois não dá para se desconectar do celular, nem por um momento.

“Eu tenho dificuldade para desligar. Você desliga meia hora e parece que fica fora do mundo, você já não sabe mais de nada e o por que as coisas mudaram”, me contou o repórter da Mural, Lucas Veloso. Ele mora em Guaianases, zona leste, e também tem sofrido bastante com essa ansiedade.

A avalanche de informações nos deixa ainda mais tensos. Viver conectado a diversos grupos de whatsapp, acordar e escovar os dentes lendo mais um relatório ou panorama já virou rotina por aqui e também para  a amiga jornalista Jéssica Moreira, moradora de Perus e cofundadora do Nós, Mulheres das Periferias.

 

Reuniões na redação foram suspensas (Léu Britto/Agência Mural)

“A minha maior dificuldade tem sido mediar essa tensão e medo com a falta de concentração. Você acha que vai dar conta de tudo no dia e acaba trabalhando mais. Fazer a gestão dessa informação acaba sendo um desafio para nossa profissão.”

É certo que estamos trabalhando mais (muito mais). O jornalismo sempre se fez necessário e importante para a nossa sociedade e, principalmente para a manutenção da nossa democracia. De outro lado estamos vivendo um momento histórico.

Você já parou para pensar que o dia de hoje estará nos livros de histórias de seus filhos e netos? E qual será o lado da história que vai aparecer nesses livros?

Por enquanto, só sabemos que precisamos continuar noticiando o que foge dos olhos das mídias tradicionais. A rotina, as histórias e as desigualdades das moradoras e moradores das periferias da Grande SP.

Anderson Meneses é codiretor e cofundador da Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
anderson@agenciamural.org.br