As periferias não podem se tornar a isca fácil pela audiência de uma tragédia anunciada
Vagner de Alencar
Como o governo pretende combater o coronavírus nas periferias? Como a solidariedade está unindo os moradores das periferias? Quais são os impactos da Covid-19 nas periferias?
Essas perguntas poderiam ser facilmente títulos de artigos científicos. Mas são só algumas das manchetes dos principais jornais do país. As periferias agora estão no centro da notícia.
As favelas, comunidades, bairros periféricos, como você queira chamar, nunca receberam tanta atenção do noticiário, do jornal local ao principal telejornal nacional.
Os assuntos são diversos: hospitais e transportes lotados, a escassez de água, as condições precárias de moradia ou a conexão ruim da internet. Só que esses sempre foram problemas cotidianos de quem vive às margens.
É fato que a demanda de informações sobre e para as periferias é urgente e que o coronavírus (pelo menos espero) esteja fazendo com que a imprensa possa enxergar o tamanho do buraco de uma cobertura até então viesada, negligenciada e estereotipada.
A desigualdade sempre existiu, mas ela foi “normalizada”, o que também impõe uma desigualdade de informação.
É inegável que a imprensa geralmente se rende aos estereótipos. A cobertura do coronavírus está algumas vezes enveredando por esta imagem que vende bastante: a tragédia.
Por outro lado, há também boas coberturas sendo realizadas por alguns veículos que mostram que as periferias são muito além do que isso.
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Quando as histórias não são de desgraça, é comum, como tem sido nas últimas semanas na Agência Mural em especial, receber mensagens e e-mails de jornalistas e produtores em busca dos contatos dos entrevistados.
Histórias que sempre existiram, mas por estarem do lado de lá da ponte não são buscadas porque o CEP está distante demais. A alternativa então acaba sendo pedir as fontes na tentativa de recontar a notícia.
Na Mural nossa maior preocupação sempre foi não nos sucumbirmos ao terror, como nunca fizemos.
Pelo contrário, buscamos aquilo que acreditamos ser fundamental na cobertura periférica: trazer à tona as informações úteis, histórias de cuidados, quais são os serviços e as ações tomadas pelas periferias.
Sempre bradei por aí que nosso sonho é não existir. Isso porque acreditamos que um dia os veículos jornalísticos produzam histórias para além do centro expandido do poder político e econômico. Mais: que as periferias não sejam mais apenas os algozes ou as vítimas da cidade.
Querendo ou não, em meio a esta cobertura do coronavírus, essa transformação parece ter dado os ares para inúmeros veículos, seja na ampliação das vozes do debate ou nas questões relacionadas às desigualdades no acesso à infraestrutura e serviços públicos.
Espero que a pandemia sirva para que o fluxo de informações sobre e para as periferias não continuem a ser uma luta de coletivos e mídias independentes.
Que elas não sejam a isca fácil pela audiência de uma tragédia anunciada.
Ao contrário, que as periferias sirvam como informação e formação para as populações, que têm o direito de ouvir, saber e entender o agora. A necessidade é urgente, ainda mais quando a desinformação vem, em muitos casos, do próprio governo.
Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
vagnerdealencar@agenciamural.org.br
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