Guerra de discursos entre governos pode fazer Covid-19 matar mais nas periferias

Paulo Talarico

As falas contraditórias das últimas semanas entre presidente, ministros, governadores e prefeitos pode ser ainda mais fatal às periferias, onde boa parte da população vai depender dos serviços públicos caso o coronavírus se espalhe rapidamente. 

Nas últimas semanas, a discussão sobre ter ou não ter isolamento social tem dominado as ações dos governantes. Muita gente segue na rua, até porque não teve escolha para garantir um pouco de renda e sobreviver neste período. Mas a falta de unidade do poder público também tem ajudado a dificultar ações de combate a doença.

Os brasileiros estão tendo de lidar com orientações opostas todos os dias. São bombardeados no celular e afogados por falsos dilemas, nascidos inclusive dentro dos gabinetes de quem deveria se preocupar com as soluções. 

Por vezes essa falta de coordenação parece pensada, em um sentido de mostrar que o Brasil não tem o ‘privilégio’ de se proteger como praticamente o mundo inteiro está fazendo. 

Uma das partes mais nocivas disso é a banalização da vida. 

A ideia de que impedir a morte do máximo de moradores fosse um desperdício para manter a economia. Esse discurso ganha espaço, porque muitos não veem e nunca viram a saúde como um direito, mas como um privilégio.

Nos acostumamos a conviver sem ela, apesar de termos um SUS (Sistema Único de Saúde). Estamos acostumados com a desigualdade do sistema, que antes da crise tinha 60% dos leitos de UTI em regiões ricas da cidade, enquanto seis distritos das periferias não contam com nenhum espaço. 

Acostumados a ver familiares jovens morrerem cedo e pensar: foi o destino. Assim como morar em uma moradia precária faz parte, a falta de água, ou o transporte lotado. Tudo era comum, era da vida. Esse discurso trabalha com a ideia de como se fosse normal que milhares morressem porque precisamos seguir na rua. 

E se sempre foi assim, porque desta vez iríamos nos cuidar e mudar a rotina para salvar vidas? É isso que passa na cabeça de muitos quando ouvem discursos contraditórios diariamente. 

Na contramão disso, as periferias têm se organizado para enfrentar a pandemia. Há muitas ações realizadas por moradores que têm buscado tanto novas fontes de renda quanto conscientizar a população de que é preciso evitar sair de casa. 

Existe o trabalho realizado pelo jornalismo que tem trazidos respostas para a pandemia e mostrado as desigualdades. Dentre eles, vários comunicadores periféricos pelo Brasil que buscam enviar informações para quem vive nas favelas. 

Além disso, diversos moradores estão produzindo máscaras para ajudar a evitar a propagação. Outros têm disponibilizado materiais de higiene que possam ajudar pessoas que vivem em locais apertados e com pouca água possam se proteger. Ações para doar alimentos também tem mobilizado diversos grupos nos bairros como Paraisópolis

E é natural que ocorra. A solidariedade sempre foi uma das marcas dessa atuação periférica, mas ela não será suficiente se diariamente essas populações forem confundidas por quem não se importa com o número de óbitos. 

Porque é direito de todos que estão na cidade receber apoio e suporte para passar por essa crise. É direito estar em casa, é direito receber apoio e com a luta de todos conseguir os espaços de saúde disponíveis a tempo de enfrentar a crise. Assim como é urgente garantir o auxílio para quem precisa. 

Muitos que precisam comer ainda aguardam enquanto o aplicativo do governo mantém “em análise” o pedido dos R$ 600.

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Se é um direito, precisamos pensar em como conseguir que as pessoas fiquem em casa em vez de estimulá-la a ir às ruas. 

Vale lembrar que o coronavírus causou várias mortes em pessoas que tinham condições de pagar pelo sistema privado de saúde. 

É uma doença grave que já mata quase 600 pessoas só na Grande São Paulo, fora os 8 mil contaminados e 32 mil casos suspeitos da região. Se é assim, não podemos deixar que quem dependa do serviço público seja contaminado mais rápido por causa da ideia de que o Brasil não pode parar. 

Quem puder precisa ficar em casa para evitar que a doença avance rápido. Essa mensagem, porém, precisa ser clara por parte de quem governa. E as periferias precisam de condições para ter o isolamento social.

Paulo Talarico é cofundador e editor-chefe de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
paulo@agenciamural.org.br