O que é um correspondente local e por que ele ajuda a quebrar estereótipos sobre as periferias

Cíntia Gomes

Meu bairro já foi considerado o mais violento do mundo e quem mora ali sabe os efeitos que esse dado causa: estereótipos e mais estereótipos. Até hoje ao dizer que sou do Jardim Ângela, na zona sul da capital, há uma certa estranheza de alguns. 

Ao acompanhar e fazer uma busca simples de notícias sobre qualquer bairro da periferia, parece ser um padrão dar enfoque no negativo.  

Daí a experiência de dez anos fazendo a cobertura das periferias da cidade e da Grande São Paulo possibilitou entender alguns princípios necessários para que o jornalismo feito pela e para as periferias seja equilibrado, de qualidade e fundamental para a democracia.

Um texto do Vagner de Alencar publicado recentemente aqui no blog cita que as periferias estão no centro da notícia por causa da pandemia do novo coronavírus. Há diversos assuntos em pauta como superlotação de hospitais, transportes, condições precárias de moradia.

São questões que sempre existiram, mas só tem visibilidade quando se torna algo geral e afeta também quem não está nas bordas da cidade. 

Ao longo dessa trajetória da Agência Mural sempre trabalhamos com alguns princípios. Um deles é a ideia do correspondente local.

Correspondentes da Agência Mural (Divulgação)

Por morar na periferia, esse correspondente pode trazer o olhar de quem vive nessas regiões. É um exercício contínuo na rotina de quem cobre as periferias, saber o que se fala do seu bairro, buscando entender o que é preciso mostrar de diferente do que já saiu na mídia.

Ter a pauta e a fonte próximo diariamente te faz ser o primeiro a contar histórias que ninguém mais conta. 

A partir de um papo com um amigo, um vizinho ou alguém que está esperando o mesmo ônibus que você, que está na mesma fila para ser atendido no pronto socorro, que estudou na mesma escola pública, que saiu para comprar pão na mesma padaria e frequenta o mesmo parque.

Também buscamos  evitar usar palavras de juízo de valor e clichês. É o caso do termo “carente”, fácil de encontrar em títulos e manchetes sobre nossas regiões. Geralmente usado para se referir a moradores e crianças pobres, como alguém que sempre precisa de ajuda, alguém que está sempre “faltando” alguma coisa. 

Mas o que se quer dizer com isso? A pessoa é carente por quê? E do quê? De afeto, de bons equipamentos culturais, de lazer, de educação de boa qualidade, de um atendimento adequado na saúde, de direitos básicos? Quem é esse “carente” que serve para rotular os moradores das periferias. 

As periferias são diversas e há níveis de renda distintos. Todos possuem formação profissional, nível escolar, valores, núcleo familiar tão variados quanto os dos cidadãos moradores de outros bairros de São Paulo. É sempre importante lembrar que ser morador de um bairro periférico não resume ninguém.

Jardim Ângela, na zona sul de São Paulo (Léu Britto/Agência Mural)

PROBLEMAS JÁ ERAM URGENTES

É nos bairros periféricos onde a falta dos equipamentos públicos e da presença do estado é mais sentida. É comum não ter água em casa todos os dias na favela, e isso não é de agora. 

É uma situação que ocorre desde o início da crise hídrica no estado de São Paulo, em 2014, e nunca foi regularizada pela Sabesp. 

Outro exemplo é na saúde pública, quantas mudanças foram feitas nos últimos anos e hoje todos sentimos a falta do corte de investimento na área

Hoje em meio a pandemia do novo coronavírus estão correndo contra o tempo para criar leitos de UTIs e contratar profissionais da saúde. Lembrando que antes já era algo necessário e urgente.

Falar disso é papel de um jornalista local. Assim como contar histórias que fazem a diferença e são iniciativas de moradores. Como de uma doula e enfermeira obstétrica que realizam partos humanizados na periferia, ou de psicólogas das periferias que indicam rotina em casa e novas tarefas para lidar com quarentena, entre muitas outras. 

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Como correspondentes locais, nós experimentamos diariamente os mesmos desafios que os moradores enfrentam, já que também moramos no mesmo lugar.

Ser um correspondente local é contribuir para um jornalismo menos estereotipado, mais diverso e conectado com a realidade das periferias. Deixando de lado discursos engessados que reforçam que é um lugar só de notícia ruim e escassez de infraestrutura. 

É ser um especialista em sua região utilizando o jornalismo para informar e contar as histórias em que os moradores das periferias possam sentir-se representados e reconhecer seus direitos. Algo ainda mais urgente em tempos de crise como essa. 

Cíntia Gomes é jornalista, cofundadora e editora de comunicação institucional da Agência Mural de Jornalismo das Periferias. 

cintia@agenciamural.org.br