Apagão de dados sobre Covid-19 afeta periferias desde começo da pandemia

Paulo Talarico

Nos últimos dias, o governo federal mudou a divulgação dos dados de mortes por causa da Covid-19 e deixou de apresentar o número total. As medidas foram criticadas pela falta de transparência e dúvidas sobre a credibilidade das informações no momento mais crítico da pandemia.

Infelizmente, a situação a nível nacional é semelhante ao que é visto nas periferias de São Paulo desde março. O apagão nesses casos sempre existiu. 

Não tem sido informado qual a situação nas comunidades da capital. Líderes comunitários de Paraisópolis e de Heliópolis, as duas maiores favelas paulistanas, por exemplo, relataram dificuldades em conseguir dados oficiais sobre a infecção.

A situação é a mesma nas mais de 1.700 comunidades da capital. Ao longo de três meses, a prefeitura soltou apenas pistas.

Um exemplo, foi a fala de que regiões pobres da cidade sofrem dez vezes mais riscos de morte com a Covid-19, mas sem trazer dados precisos sobre isso. Ao mesmo tempo, algumas regiões têm sido apontadas como as mais perigosas como a Brasilândia e Sapopemba.

Porém, em ambas, a prefeitura tem utilizado a quantidade de mortes confirmadas com Covid-19 e a de mortes suspeitas, misturando as duas. Em geral, envia apenas mapas, sem os números livres para análise. Menos da metade dos casos está confirmada.  

Vila Formosa é maior cemitério da cidade (Léu Britto/Agência Mural)

“Faltam dados do poder público, que deveria priorizar essas informações já que é a periferia quem mais vai sofrer com os danos da Covid-19, seja pelo número de moradores ou por falta de serviços básicos como água e de saneamento básico”, escreveu Lucas Veloso, correspondente de Guaianases em artigo publicado em abril. Quase nada mudou.

Uma das tentativas foi fazer pedidos por meio da Lei de Acesso à Informação, legislação que garante a qualquer cidadão o acesso a dados públicos. Dos pedidos feitos, quase todos foram negados. “Por conta da pandemia do coronavírus […] não será possível, fornecer as informações solicitadas”. 

A prefeitura usa a justificativa da Covid-19 para não informar sobre a Covid-19. Apenas uma vez vieram dados, diferentes dos divulgados nos mapas. 

A situação preocupa ao pensar na subnotificação, que também é grande.

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Um número informado apenas duas vezes é o de casos confirmados por distrito. No último mapa divulgado pela prefeitura (mais uma vez sem dados abertos), consta pela primeira vez mais de 6 mil casos suspeitos no Grajaú — mas a maioria não teve confirmação.

A situação é a mesma sobre o número de mortes nesta região. Sabemos que poucos foram confirmados porque há uma porcentagem estimada no desenho do mapa.  

Enquanto isso, a percepção nas periferias segue de que há mais casos acontecendo. Correspondente do Jardim São Luis, Léu Britto esteve em três cemitérios da capital (da Vila Formosa, na zona leste, do São Luis, na zona sul, e da Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte).

No relato dos sepultadores, a impressão é de que há mais casos do que vem sendo informado. Na Vila Formosa, por exemplo, foram 55 enterros em pouco mais de cinco horas. 

Na Agência Mural, temos feito a contagem de toda a Grande São Paulo, com a contagem semanal de cada uma das 39 prefeituras da região metropolitana. Um trabalho praticamente manual, por conta de dados divulgados em formato de imagens nos sites municipais. 

A escolha é fruto desse momento. O Governo do Estado disponibiliza esse portal com dados de cada cidade, no entanto, a atualização dele depende do envio de informação de cada prefeitura e, por vezes, a reportagem verificou atrasos nessa notificação. 

O levantamento em cada uma das gestões também é uma forma de acompanhar a transparência nesses municípios. 

Sepultador no Jardim São Luís, na zona sul (Léu Britto/Agência Mural)

Outras iniciativas também têm buscado mostrar a situação nas periferias. No Rio de Janeiro, o Voz das Comunidades, veículo que cobre as favelas da região, criou um painel virtual para informar o número de mortes e notificações, com dados da prefeitura e da gestão estadual.

Em São Paulo, o Labcidade, da Faculdade de Urbanismo da USP, publicou um levantamento com base nos CEPs dos pacientes e traz um panorama maior da cidade até o final de abril. O grupo de estudo reforça que a ‘simplificação da leitura da epidemia dificulta seu enfrentamento’.

Essa simplificação, por exemplo, foi utilizada para a análise do plano de reabertura gradual do comércio de São Paulo. Nele, a capital foi contabilizada como um todo, sem levar em conta a situação de cada uma das periferias. Ao mesmo tempo, proibiu a reabertura das cidades vizinhas

A transparência sobre os dados, tanto a nível nacional quanto local, pode ajudar a salvar vidas. Uma pesquisa do Ibope divulgada nesta terça-feira (9) indica que 57% dos moradores de São Paulo tomariam ainda mais cuidados contra a Covid-19 se tivessem mais informações sobre a situação perto de casa.

Muitos não teriam ido para a rua e talvez respeitassem o isolamento, se pudessem. Mas seguimos com a sensação de que estamos voando no escuro.

Paulo Talarico é cofundador e editor-chefe de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
paulo@agenciamural.org.br