Mídia independente é fundamental para garantir a pluralidade da informação
Cíntia Gomes
Nas últimas semanas, tivemos a “surpresa” de contar com dois profissionais de veículos de mídia independente como entrevistadores do Programa Roda Viva, um dos mais tradicionais programas de entrevistas do jornalismo brasileiro.
“Surpresa” não pela competência, mas pela afirmação da diversidade, inclusive racial, em um tipo de programa em que estamos habituados a ter apenas a presença de jornalistas em sua maioria brancos e que atuam na mídia tradicional.
A jornalista Semayat Oliveira, cofundadora do Nós, mulheres da periferia, e Pedro Borges, cofundador e editor-chefe do Alma Preta, veículo especializado na temática racial no Brasil, participaram da bancada.
A presença deles sinaliza que, mesmo que ainda de forma tímida, a importância da cobertura feita por veículos como esses vai ganhando um reconhecimento, não da audiência, mas do próprio mercado profissional, ainda muito fechado.
Ainda na universidade, o sonho mais comum entre os e as estudantes é integrarem a equipe de um nome tradicional da imprensa nacional, seja grande jornal ou emissora de TV. Mas a realidade do mercado de trabalho prova que essa possibilidade é remota e reservada para poucos. E a dificuldade pode ser maior dependendo de onde você vem.
Na busca por vagas, a situação social, econômica e geográfica pesa. Os desafios para um “foca” (jornalista recém-formado) são imensos. Se não tiver estudado em uma universidade mais “conceituada”, a busca por um lugar ao sol já tem de suplantar esse obstáculo da linha de largada. Não ter morado fora do país e ser fluente em pelo menos uma língua, como o inglês, também. Todos esses critérios considerados “básicos” em muitas seleções para uma posição de início de carreira no jornalismo.
O bom é perceber que há um movimento para mudança desse contexto. Principalmente quando vemos jornalistas da quebrada, aqueles que estão juntos e juntas na missão de informar e contar boas histórias das periferias, dividirem uma bancada de entrevistadores em programas tradicionais e nacionais. Comemoramos sim, pois mesmo que seja ainda pontual, é um começo.
E parte disso se deve à existência dos coletivos que se transformaram em veículos independentes. A maior parte deles surgiu na última década por iniciativas de jovens jornalistas que moram nas periferias e que sentiram a necessidade de criar o próprio espaço para contar histórias sobre o que acontece em sua região.
Depois de anos, essas organizações da mídia independente não têm apenas conquistado mais audiência, mas também o respeito dos colegas de profissão, e conquistam seu devido espaço, mostrando que fazem jornalismo de boa qualidade.
Esse movimento tem gerado também uma vontade de mudança interna nas redações dos grandes veículos: a diversidade, afinal, é a força que eles não têm. Na Agência Mural, temos recebido muitos pedidos por indicações de jornalistas e comunicadores com um perfil bem específico, desta parcela normalmente ausente de suas equipes –mulheres, negros ou negras e profissionais LGBT.
Nós, na Mural, sabemos que é esta diversidade em nossa rede que faz nosso jornalismo melhor e mais preciso, porque ele serve ao interesse público, justamente, do público (e o público é diverso!).
Porém sabemos também que muitos desses profissionais não chegariam às grandes redações pelos caminhos comuns do mercado de trabalho. Não por falta de talento ou competência, mas porque no jornalismo, como outros setores da economia, ainda é um meio restrito e de nomes e rostos carimbados pelos privilégios que a classe socioeconômica garante a um percurso individual.
Ou seja, é no final o profissionalismo e a qualidade do jornalismo praticado por esta mídia independente que tem contribuído para dar visibilidade a estes profissionais e ao que estas redações, masculinas e brancas, estão perdendo em pluralidade.
Temos diversos exemplos de jovens que seu primeiro contato com o jornalismo foi com a Mural, mas que depois foram “descobertos” e seguiram o caminho para redações de grandes veículos e emissoras. E se esse é um caminho para construirmos uma imprensa mais diversa, é mais que positivo.
Mas também é preciso valorizar a mídia independente para que não seja apenas um espaço de formação. Trata-se de um lugar com jornalistas tão qualificados quanto qualquer outro jornalista da “grande mídia”, onde os veículos produzem notícias de qualidade e que garantem, com a pluralidade da informação, o fortalecimento da democracia.
Cíntia Gomes é jornalista, cofundadora e diretora institucional da Agência Mural de Jornalismo das Periferias.
VEJA TAMBÉM:
Combater o racismo também passa por ter mais jornalistas negros nas redações
Jornalistas das periferias refletem sobre rotina e saúde mental durante a pandemia
Como criar conexões contribui para a formação de jornalistas locais