Será que foi agora que banalizamos a morte?

Paulo Talarico

Minha avó tinha 50 anos quando morreu em 1998, por uma complicação no coração em uma história até hoje meio incerta no tratamento que recebeu em um hospital privado. Uma prima da minha mãe tinha menos de 40 quando morreu com um problema do coração. A mãe dela, mais velha, morreu dias depois. 

Ao longo da vida, cada um tem sua história com a perda de familiares, uns mais cedo, outros mais tarde. Em geral, tentamos nos consolar entendendo ser o ciclo da vida. Na minha família, em geral, a vontade de Deus sempre foi a mais citada nesses dias. 

Não minimizo a fé religiosa, e a relação com a morte é algo muito pessoal (na infância católica ia para igreja e tenho minha religiosidade). Em um período tão dramático, cada família busca diversas formas de amparo. Mas preocupa quando esse amparo faz com que as pessoas evitem cuidados que podem salvá-las. 

Nos últimos meses, a pandemia de Covid-19 tem imposto falar sobre mortes, praticamente todos os dias. Afinal, estamos perto das 100 mil no Brasil. Mais de 16 mil vidas foram perdidas só na Grande São Paulo. 

Um fator que tem virado discussão constantemente é o quanto banalizamos a vida ao retratá-la em números, se nós no jornalismo estamos desumanizando essas histórias. Não discordo da importância da discussão, mas vejo outras questões. 

Também se aponta o quanto o assunto Covid-19 se tornou cansativo, em uma quarentena que não tem data para acabar (na teoria), enquanto na prática, as pessoas vêm relaxando e voltando ao normal como se nada tivesse acontecendo. 

Meio que aprendemos a conviver com ela. Será que banalizamos a morte?  

Covas abertas para receber vítimas de Covid-19 (Léu Britto/Agência Mural)

Infelizmente, não é de agora que a morte é levada de lado por boa parte da nossa sociedade, marcada por tragédias, crimes contra moradores de bairros pobres, que ocorrem repetidamente, e a falta de serviços públicos que facilitem a saúde. 

O quanto somos educados para pensar que a vida na periferia não tem tanto valor?

Em geral, aprendemos pouco a se cuidar, a comer direito, as precauções. Estamos correndo tanto atrás do dia a dia, que a última coisa que passa pela cabeça é: o que vou fazer para evitar doenças? Em geral, corremos atrás do médico quando a coisa já está evoluída. 

Muitas vezes, chegamos tarde ou quando chegamos pegamos aquela fila longa que desanima. Daí a gente melhora um pouco nesse tempo e não voltamos para a consulta. Meses depois, não há tempo para ela. 

Fora que os leitos hospitalares, em geral, estão concentrados nos principais centros econômicos, como se viu em São Paulo. Nesta semana, uma reportagem da Folha mostrou que a  maioria dos que chegam na UTI de um hospital na zona leste não sobrevivem. Chegam já em situação crítica. 

E nessas regiões também está a maior parte da população negra, que também é a que tem corrido mais risco de morrer por causa da pandemia, embora os dados oficiais, por vezes, ocultem isso

DESTINO E DISCURSOS

Apontamos diversas vezes que tudo isso foi obra do destino. E é isso que desde o começo da pandemia vem sendo feito. Não só pela população.

O próprio poder público, em uma guerra de discursos que mais confundiu do que instruiu sobre o que era a pandemia, contribuiu para essa ideia de que é inevitável

As vítimas dessa ideia, em maior parte, foram as pessoas que estão nas periferias. Aquelas que nunca puderam parar para se isolar direito.  

Hoje, nesta fase amarela, os bares e restaurantes vêm subindo suas portas, pela necessidade ou não, e por uma ideia de volta à normalidade, embora as mortes e os casos mais que dobraram desde o começo do Plano São Paulo. 

Tem sido difícil a missão de explicar a  importância das máscaras, do distanciamento, da necessidade de limpar coisas que cheguem de fora de casa. “Todo mundo pode pegar a Covid, é crer em Deus”, diz um parente. Pena que não é tão simples. Pena pensar que poderíamos ter uma tragédia menor.

Sinto que a questão não é que banalizamos a vida, mas que nunca aprendemos a cuidar dela.

Paulo Talarico é cofundador e editor-chefe de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
paulo@agenciamural.org.br