É preciso bom senso ao pedir fontes para jornalistas das periferias

Vagner de Alencar

O ano era 2011. Do alto de minha laje em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, uma casa verde chamava atenção. Decidi descobrir quem era o responsável por levar um ponto verde à favela pintada pelo amarronzado dos blocos aparentes. 

Era Antenor Feitosa, pedreiro, um quase cinquentão, aposentado por conta de um marcapasso no coração. A história foi contada neste blog, há quase nove anos, e imediatamente repercutiu. Em questão de minutos, choveram pedidos de contato. De toda parte, de profissionais de arquitetura a fotógrafos e jornalistas. 

Todos queriam o número de telefone de Antenor. Eu não tinha. Na época, não senti necessidade, já que ele era meu vizinho.

Uma busca pelo Google Street View poderia ser suficiente para encontrar a casa verde do pedreiro convertido a arquiteto e artista. Em poucos dias, Antenor já era notícia em vários sites e canais de televisão.

Pedir contatos dos entrevistados (no meio jornalístico mais conhecido por “fontes”), como no exemplo da história de Antenor, ilustra uma demanda quase rotineira, especialmente para mim, ex-morador e correspondente de uma das favelas mais importantes do país. 

Por conta da Agência Mural, ainda mais ampliada, pela cobertura que fazemos em dezenas de bairros da Grande São Paulo.

É inumerável a quantidade de colegas de profissão, aqui incluídos estudantes e jornalistas profissionais, que ajudei com acesso a fontes. 

Em alguns casos, ainda quando eu vivia em Paraisópolis, até mesmo os acompanhei rumo às entrevistas. Um verdadeiro trabalho de pauta à pré-produção. Sem qualquer tipo de remuneração. Ainda pior, sem devolutiva daquilo aos mais interessados: os próprios moradores.  

O pedreiro Antenor que o diga. Anos depois, em Paraisópolis, ele me contou sentir sua privacidade desrespeitada por conta da abordagem. “Jornalistas chegavam aqui na minha porta, entravam apontando um gravador na minha cara já perguntando se eu era casado, se tinha filhos. Ficava sem reação, mas aceitava, só que nunca sabia onde ou quando aquelas reportagens seriam publicadas. Ninguém nunca me retornava”.

Priscila Gomes, correspondente da Agência Mural na Vila Zilda, vivenciou uma situação bem parecida, em janeiro de 2018, com Geraldo dos Santos, uma de suas fontes. Coincidentemente similar à história de Antenor, ele ergueu um castelo com sobra de materiais, no Tremembé, zona norte de São Paulo.

“Dois dias depois, um produtor de uma televisão me ligou querendo o contato dele. Era véspera de feriado, 24 de janeiro”, conta Priscila. Como não havia conseguido falar com o entrevistado por ser tarde da noite, para então autorizar o contato, ela propôs a ligação para o dia seguinte, pela manhã.

“No outro dia, às nove da manhã, o senhor Geraldo me ligou porque tinha uma equipe de tevê na porta da casa dele, com câmera, repórter e tudo mais”, relembra. “Liguei para o produtor e ele disse que, mesmo sem a minha ajuda, conseguiu. Respondi dizendo que aquilo era desrespeitoso, chegar na casa de um idoso num feriado de manhã sem avisar”. 

Para um repórter, as fontes são a principal matéria-prima. Como costumo dizer: nunca damos vozes a elas, mas, sim, as amplificamos. Nossos entrevistados são, portanto, nosso maior tesouro, especialmente para um jornalista da periferia. 

Cobrimos os bairros nos quais moramos, ao contrário de qualquer outro colega, que pode entrar ali (geralmente com pedido de ajuda) e sair ao seu bel-prazer. 

Na Mural chegamos até mesmo a estabelecer uma política interna em relação aos entrevistados: passar o contato para o jornalista, mediante autorização da fonte, ou vice-versa.

Nosso compromisso é salvaguardar o que, para nós, é o mais importante: cultivar a relação de confiança e responsabilidade para com nossos entrevistados, que, na verdade, são nossos vizinhos.

Enquanto pauteiros, produtores, repórteres, estaremos sempre precisando de ajuda. Afinal, vivemos em uma metrópole com mais de 21 milhões de pessoas, complexa e desigual. Longe de mim barrar qualquer tipo de contato. Mas é preciso bom senso. 

Para além de moradores, somos também repórteres, e ao entregar nossas histórias de “mão beijada”, estamos também entregando nossa força de trabalho. Como se, ao viver na periferia, pudéssemos e tivéssemos no bolso todas as fontes possíveis. 

Como diz o trecho do livro Manual de sobrevivência na selva do jornalismo”, de Luiz Antonio Mello, lido ainda durante a faculdade: “Ter fontes em todos os lugares é mais do que fundamental, é um exercício de sobrevivência numa redação”. Em novembro deste ano, a Mural completa dez anos de existência.

Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural

VEJA TAMBÉM:

Combater o racismo também passa por ter mais jornalistas negros nas redações

As periferias não podem se tornar a isca fácil pela audiência de uma tragédia anunciada