O impacto das cotas raciais e sociais na diversidade
Cíntia Gomes
Vira e mexe com a chegada das eleições e mudança de governo, sempre ressurge projetos de lei que buscam uma forma de tirar o que já foi conquistado. Utilizando um discurso de que ampliar o acesso à educação e ao mercado de trabalho por meio de ações afirmativas é discriminação com os demais.
Recentemente um projeto de lei na cidade de São Paulo prevê acabar com as cotas raciais em concursos públicos. Regulamenta pela Lei nº 15.939, de 2013, que dispõe sobre o estabelecimento de cotas raciais no serviço público municipal.
Esse tipo de ação também tem sido vista na educação. Em junho, o MEC (Ministério da Educação) revogou e depois voltou atrás na política de cotas que reserva vagas a pessoas negras, indígenas e com deficiência nos programas de pós-graduação das universidades federais.
Podem parecer assuntos distintos, mas, na verdade, além da questão cotas em comum, é também um reflexo da desigualdade social, econômica, geográfica e racial que existe no país.
E onde entra a diversidade nas redações nisso tudo? Eu sou formada em jornalismo em uma universidade particular, graças a uma bolsa de 100% da primeira turma do Prouni (Programa Universidade Para Todos), lá em 2005.
No ano em que consegui uma vaga na universidade, eu já estava fazendo um técnico em administração na Etec e tinha ido para a segunda fase na USP no curso de letras, após três tentativas frustradas em jornalismo. Acabei aceitando que estudante de escola pública tinha que tentar um curso menos elitista. Mas viva às políticas públicas, e hoje estou aqui!
Sem isso, provavelmente eu estaria em outra área, e não há 14 anos exercendo a profissão que escolhi, cobrindo educação, contando histórias e desconstruindo estereótipos sobre o bairro onde nasci e cresci, o Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. E muito menos como diretora de uma agência de notícias na qual cerca de 90% são os primeiros da família a ingressar no Ensino Superior e só chegaram à universidade por meio de políticas de cotas e bolsas.
Um levantamento divulgado em 2015 pelo Ministério da Educação revelou que, em 2014, 35% dos alunos universitários, em fase de conclusão de curso, foram os primeiros da família a entrar em uma instituição de ensino superior. Desse total, 56% tinham renda familiar de até três salários mínimos e 36% ingressaram por meio de ações afirmativas.
A repórter e correspondente de Carapicuíba, Ana Beatriz Felício, participou nesta quinta-feira (17) de uma live para falar sobre mídia e representatividade. “São vários fatores que levam uma mulher negra a não entrar na redação. Quantos processos seletivos exigem inglês fluente e essa mulher não tem?”, destacou.
Ana Beatriz conta ter estudado na rede S porque o pai dela trabalhava na indústria. “Fiz técnico e médio junto. Mas parto do ponto que já tive o primeiro privilégio de uma boa educação básica. Na faculdade fui bolsista. Cheguei a passar na UFRJ e na federal de Natal, mas naquela época não tinha dinheiro para pagar passagem e fazer inscrição. E depois consegui bolsa integral em uma universidade particular”, revela.
Lembro que no ano em que iniciei no jornalismo, podia contar nos dedos de uma mão quantos negros tinham na turma. Era comum ler opiniões de especialistas em reportagens de que os bolsistas do Prouni iriam diminuir o desempenho das universidades.
Pelo contrário. Uma pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) comparou notas de mais de 400 mil alunos no Enade (Exame Nacional de Desempenho de Estudantes), entre 2015 e 2017, e mostrou que os bolsistas integrais do Prouni tiveram notas maiores em relação aos bolsistas parciais e estudantes de escolas particulares não participantes do programa.
Mesmo assim, ataques às políticas afirmativas continuam. Parece que se esquecem que a parcela que não precisa de cotas têm portas abertas e muito mais oportunidades, pelo simples fato de terem melhores condições e qualidade de vida desde cedo.
Com a criação desses mecanismos, hoje temos muito mais negros e periféricos em universidades e empresas do que antes. E para quem pensa que é tudo conquistado fácil ao só se declarar negro ou pobre está muito enganado.
É preciso ter as melhores notas no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), entrevistas, estudar muito e correr atrás do prejuízo de um ensino precário que teve na educação básica.
O Enem hoje é a principal porta de entrada no Ensino Superior. É por esta prova que são preenchidas as bolsas do Prouni (o governo custeia vagas em universidades privadas para alunos com boas notas) e SISU (seleção para as instituições estaduais e federais).
Um levantamento do IBGE sobre “Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil”, de 2018, mostra que o número de matrículas de estudantes negros e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos, representando 50,3% dos estudantes, reflexo dessas políticas públicas.
Cada vez que escuto sobre a discussão se deve continuar ou não com cotas, seja racial ou não, olho para mim e ao meu redor e percebo o quão recente é esse acesso à educação e formação profissional a partir da minha geração. Do quanto tenho hoje primos, amigos e colegas com um diploma do ensino superior. Que puderam escolher uma profissão, que levaram a diversidade para a sala de aula e mercado de trabalho.
Enquanto a educação não for igual e de qualidade para todos desde o ensino básico, essas cotas são fundamentais para que cada vez mais tenhamos negros, pardos e periféricos ocupando todos os espaços que quiserem fazer parte. Inclusive nas redações.
Cíntia Gomes é jornalista, cofundadora e diretora institucional da Agência Mural de Jornalismo das Periferias.