Processos seletivos apenas com negros podem ajudar a reverter desigualdade
Vagner de Alencar
O aviso do processo seletivo de trainee, exclusivamente para negros e negras, feito pela Magazine Luiza — em seguida, embalado por outras empresas inspiradas na decisão — gerou debates acalorados dentro e fora das redes sociais.
Algumas argumentações pairaram no ar, entre elas a ideia de um racismo reverso, ou seja, uma discriminação contra brancos. Um mito, infelizmente, ainda não superado.
Celebrei ao me deparar com esta ação afirmativa que, para mim, procura reparar as desigualdades raciais no mercado de trabalho. Afinal, segundo dados do IBGE, negros e pardos representam apenas 30% dos cargos de chefia, embora sejam mais da metade da população brasileira.
Essa celebração automaticamente me remeteu à vida acadêmica, há dez anos, em minha tentativa de trocar o posto de atendente de lanchonete na Feira da Madrugada, no Brás, em São Paulo, pelo de estagiário ou trainee, mais tarde, numa grande companhia.
Pregadas nos corredores da faculdade ou listadas em sites, as indicações de vagas espelhavam segregação. A maior parte dos processos seletivos deixava claro quem eles queriam admitir: apenas estudantes de faculdades consideradas top de linha.
Em meu caso, a matrícula em uma universidade renomada aos olhos dos recrutadores me catapultava às seleções. Geralmente não mais que à primeira fase, das muitas etapas. A cor da pele (destoante dos demais concorrentes) e o CEP (o endereço era Paraisópolis, a segunda maior favela da capital paulistana) eram marcadores de exclusão.
Apesar de não haver uma determinação de candidatura de apenas pessoas brancas, ela ocorria porque a presença de negros nesses cursos de jornalismo era quase ínfima, o que ressoava (e ainda ressoa) nos processos seletivos.
Apesar de não haver uma determinação da candidatura de residentes do centro expandido, a seleção de candidatos periféricos era mínima.
Entre decidir entre quem tomaria ao menos duas conduções para chegar ao futuro trabalho e quem era vizinho da empresa, localizada sempre nas áreas mais nobres da cidade, a opção ficava pelo segundo.
Há pouco mais de um ano, em um artigo escrito para o site da Agência Mural, abordei o fato de que a maior empresa de quadrinhos do país parecia restringir o recrutamento de moradores das periferias. Em um processo seletivo, exigia-se que o candidato indicasse se gastava entre meia e duas horas e meia para chegar ao trabalho. Após a publicação, a empresa retirou do ar a exigência.
Não contratar candidatos das periferias é também não contratar pardos e negros, população que ultrapassa mais de 50% em moradias nas bordas da maior cidade brasileira. As regiões sul e leste do município encabeçam o ranking dos distritos com a maior quantidade de afrodescendentes.
Segundo dados da Secretaria Municipal de Promoção e Igualdade Racial, quanto maior a porcentagem de negros em uma subprefeitura paulistana, menor é a renda média domiciliar.
No distrito de Parelheiros, no extremo sul da capital, o número de negros chega a 57,1%, enquanto no rico Pinheiros, na zona oeste, esse total é de 7,3%, ou seja, quase oito vezes inferior.
Enquanto a decisão de priorizar a contratação de negros e negras continua a gerar críticas, sobretudo àqueles alheios aos abismos raciais e sociais, nos deparamos, por exemplo, com os moradores da Cidade Tiradentes, no extremo leste, com 246 vezes menos chances de conseguir um emprego formal do que os da Barra Funda.
O distrito, na zona oeste paulista, lidera a quantidade de oferta de trabalho, com 59 postos para cada dez moradores, segundo dados do Mapa da Desigualdade, atualizado anualmente pela Rede Nossa São Paulo.
Mas, no final, o que pareceria ser uma clara atitude de diminuição das desigualdades raciais e sociais, pelo contrário, parece reforçar a sensação de um limite que nunca pode ser superado. Como em uma corrida da qual você jamais poderá chegar (tampouco se aproximar) da linha de chegada.
Como se estivessem o tempo todo nos impondo algum limite que parece apenas uma fronteira geográfica, mas não é. Ou minimizando a cor da pele, ao dizer que “nós somos todos iguais”, quando na verdade não somos.
Como se escrevessem num outdoor gigantesco na frente de nossas casas: “Você só pode ir e ser até aqui. Daqui pra frente não é espaço pra você.”
Vagner de Alencar é jornalista, cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias