Como ler notícias sobre pós-pandemia se mais um preto morre todo dia?
Vagner de Alencar
Em Barra do Choça, minha terra natal baiana, a 500 km de Salvador, minha avó Alice deixou em luto o povoado onde cresci e no qual ela viveu por quase todos os seus 76 anos.
A partida foi ainda mais dolorosa, já que a pandemia impediu a despedida por parte de familiares e amigos. Eles só puderam vê-la de dentro do carro da funerária, distante do veículo, por duas horas.
Vítima de uma complicação nos rins, aquele adeus foi ainda mais triste por tamanha brevidade, ao contrário dos velórios de 24 horas, símbolo da derradeira presença diante da partida definitiva.
Enquanto o povoado Cavada ainda seca as lágrimas pela perda de Alice, as preocupações com a Covid-19 parecem ter sido riscadas pelos candidatos à prefeitura de Barra do Choça.
Caminhadas e carreatas têm lotado as ruas da zona urbana e rural. Em vídeos nas redes sociais, candidatos e apoiadores sem máscaras posam em fotos e geram aglomerações com centenas, quiçá milhares de pessoas.
Assim que a campanha ganhou força, população e poucos veículos (blogs) de notícias tentaram problematizar os riscos da Covid-19. Na maior parte dos casos, aparentemente mais preocupados em atacar o adversário, sob a acusação de falta de distanciamento social. Nem isso mais. A sensação é que não existe mais pandemia em Barra do Choça.
Tento buscar o número de casos da doença na cidade. Nada em blogs, tampouco no site da prefeitura. Não há informações sobre cuidados. Espero que exista nas caixinhas de som espalhadas pela praça principal ou em cartazes pregados em pontos públicos.
A sensação, porém, é que não existe mais pandemia em Barra do Choça. Ao todo, foram pouco mais de 450 casos confirmados na cidade e seis mortes, segundo o portal Lagom Data.
Os números gerais não estampam, como antes, o topo dos portais. Desde o início da pandemia, 155.459 pessoas perderam suas vidas para a Covid-19.
A corrida eleitoral avança a todo vapor na cobertura da imprensa, da Bahia a São Paulo. Imagino que em outras cidades pequenas como Barra do Choça às grandes metrópoles.
Precisamos estar bem informados sobre o cenário político. Este é o papel da imprensa, ao veicular, por exemplo, supostos casos de corrupção de governantes com dinheiro na cueca destinado justamente ao combate à pandemia.
Boa informação nos leva à possibilidade de tentar eleger melhores candidatos, para que em situações como essas, diferentemente de agora, milhares de mortes sejam evitadas.
Embora seja importante saber quando e se haverá vacina ou não, sinto me deparar cada vez mais com reportagens sobre o “pós-pandemia”. Vi há pouco, algumas como: os cuidados da pele no pós-pandemia, as profissões badaladas no pós-pandemia, a recuperação de empresas pós-pandemia.
Minha vó Alice não morreu de Covid, mas, na última semana, duas irmãs de uma conhecida jornalista e o pai de um amigo, todos no extremo da zona sul de São Paulo, pretos e pobres como Alice, perderam suas vidas para a doença.
Pergunto: como ser capaz de ler uma notícia sobre cuidado com a pele no pós-pandemia, se, em 24 horas, mais de 500 pessoas, a maioria de cor preta, fecharam os olhos de vez, vítimas do coronavírus?
Vagner de Alencar é jornalista, cofundador e diretor de jornalismo das Agência Mural de Jornalismo das Periferias