O ‘vírus da desigualdade’ continua mais evidente do que nunca

Vagner de Alencar

Nem nos poucos filmes de ficção científica que ora ou outra costumo assistir, imaginaria um dia ver o mundo inteiro em luta contra um vírus que se espalhou (e continua) como rastro de pólvora. Em todo o planeta, mais de dois milhões de pessoas perderam suas vidas para a Covid-19; no Brasil, esse número chega a mais de 220 mil vítimas. 

Dez meses se passaram desde a primeira morte pelo coronavírus no país, em 12 de março de 2020, em São Paulo, cuja oficialização da quarentena no estado foi decretada uma semana depois.

Naquele mês, antes da maior crise sanitária do século aterrorizar a população mundial, minha maior preocupação era planejar minha festa de aniversário de 33 anos. 

Evidentemente, ela não aconteceu. Pelo contrário, a prioridade passou a ser outra: respeitar o isolamento social e elaborar, junto com meu time na Agência Mural, uma cobertura jornalística a quem sempre viveu na pele as desigualdades socioeconômicas: os moradores e moradoras das periferias. 

Em 1º de maio do ano passado, decidimos então publicar o editorial “O vírus da desigualdade”. Nele reforçamos nosso compromisso em levar informação confiável, a partir de dados e fatos, para ajudar e também dizer aos nossos leitores e leitoras que eles não estavam sozinhos e sozinhas, que nossas reportagens poderiam contribuir para tomadas de decisões baseadas em ciência, não no grito.

Ainda em 2020, no começo da pandemia, já podíamos “ver” o “vírus da desigualdade” desde a dificuldade no acesso à água em Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, à impossibilidade do isolamento social para quem vivia com até dez pessoas dentro de uma mesma casa, até mesmo à falta de internet nas periferias.

Oxfam cita o agravamento da desigualdade (Léu Britto/Agência Mural)

Em um dos episódios do “Em Quarentena”, podcast diário criado especialmente para informar sobre a Covid-19 nas bordas de São Paulo, Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores de Paraisópolis, lamentou a existência de dois brasis. 

“Um brasil do home office, da quarentena, do álcool em gel e da máscara; e um Brasil das pessoas que a fome já está chegando, que mora em cima dos córregos, que está sendo demitida e continuam lotando os onibus”. 

Apesar dos esforços para o combate da doença, Paraisópolis inclusive foi referência em todo o país devido a iniciativas com direito a existências de ambulâncias fixas na favela e ‘presidentes de rua’ que ajudavam a identificar pessoas com sintomas da doença e/ou aquelas passando por necessidades de alimentos, por exemplo. 

Ao longo dos últimos meses, os problemas se agravaram e esses dois brasis continuam a existir. As contaminações aumentaram, seja pelo afrouxamento das medidas de isolamento ou ineficácia do poder público diante da pandemia, classificada como “gripezinha” pelo presidente do país.

Em abril de 2020, aqui neste blog, torci para que as periferias não se tornassem uma isca fácil de uma tragédia anunciada. O que não acontecia. Apenas em São Paulo, mais de 52 mil pessoas morreram pela Covid-19, cujas taxas de contaminação e óbitos são maiores entre as populações mais pobres, segundo a organização Oxfam. 

No último dia 25, a ONG divulgou o relatório “Vírus da Desigualdade” — coincidentemente o mesmo nome de nosso editorial em maio –, que mostrou que mulheres, população negra e integrantes de grupos étnicos minoritários são os que mais sofrem com os reflexos da Covid-19. 

Segundo o levantamento, as mulheres também foram as que mais perderam empregos durante a pandemia em todo o mundo, enquanto a população negra foi a que mais se contaminou e teve o maior índice de mortes.

Não é difícil deduzir as razões para isso. Afinal, essas populações estão em maior contexto de desigualdades de saúde e qualidade de vida. 

Ainda conforme o relatório da Oxfam, em apenas nove meses de impacto pela pandemia, os mais pobres poderão levar pelo menos 14 anos para conseguir repor suas perdas.

Enquanto as dez pessoas mais ricas do mundo acumularam US$ 540 bilhões nesse período – dinheiro capaz de custear a vacina contra o coronavírus para toda a população do mundo.

Ainda destacando dados, é importante ressaltar que no Brasil a população negra representa 75% entre os mais pobres, enquanto brancos estão entre os 70% mais ricos, segundo o informativo “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, divulgado ano passado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

Em meio à segunda onda da pandemia, para não dizer tsunami, infelizmente ainda temos nos deparado com mais de mil mortes diárias, a incerteza sobre algum tipo de auxílio emergencial ou o início da vacinação em massa. 

Como escrevemos no editorial “Vírus da desigualdade”, nosso trabalho em levar informação continua sendo fundamental para alertar sobre os riscos da Covid-19, os cuidados na prevenção da doença e o “valor” de tantas vidas.

Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias