O “torto arado” das periferias
Lucas Veloso
Foi em um dos retornos para casa, na periferia de São Paulo, dentro de um trem cheio de gente, apesar da pandemia, que comecei a ler “Torto Arado” (Todavia), do Itamar Vieira Junior.
O trem ficou parado vários minutos no meio do caminho e ali consegui ler dezenas de páginas durante a viagem. Dias depois, terminei de ler e fiquei pensando em como a história, que se passa na fazenda Água Negra, sertão baiano, se relaciona com o bairro onde moro, com as favelas e periferias brasileiras também.
No programa Roda Viva, da TV Cultura, em 15 de fevereiro deste ano, o escritor disse que o livro fala sobre a vida dos herdeiros da diáspora africana, sobre quem pouco se fala no Brasil, aqueles que vivem nos rincões mais remotos e passam por imensas adversidades.
Para mim, isso são as periferias. Em Guaianases, por exemplo, onde moro, 54,6% dos moradores são negros. Minha família mesmo, todos negros.
Após 1888, quando aconteceu o que chamamos de “abolição da escravatura”, milhares de pessoas negras foram lançadas à própria sorte sem direitos e com uma vida inteira para dar conta. Do movimento nas cidades, nasceram as favelas.
Outra coisa que me chamou a atenção foi o protagonismo das mulheres. As irmãs Belonísia e Bibiana, além de Santa Rita Pescadeira, se revezam na voz do livro, mas para além delas, outras aparecem na história e vão dando desfechos importantes aos acontecimentos. “Mulheres de poder e liderança em suas famílias e comunidades”, como definiu Itamar.
Nas periferias, sobretudo neste último ano de pandemia, percebi como, de fato, dezenas de iniciativas foram criadas, geridas por elas para dar conta da crise. Além dos termos periferia e favelas serem femininos, quem assume os problemas nos bairros populares e consegue lidar com uma série de precariedades são elas.
Mulheres que se juntam para combater a violência doméstica, para oferecer apoio psicológico, doar alimentos, além de outras necessidades básicas. Se for para citar um nome, me vêm à cabeça uma das dezenas de histórias que contamos.
Moradora e líder comunitária na comunidade Porto de Areia, em Carapicuíba, cidade da Grande São Paulo, Cleide Faria Santos fala com a gente desde antes da pandemia, quando contou como o lugar onde vive é constantemente ameaçado de ser destruído.
Em maio passado, quando começou a pandemia, ela já dizia que as pessoas ali estavam sem álcool em gel, máscara e com a fome batendo à porta.
Itamar admite que a história tem a centralidade em vidas negras. Expressão que, nos últimos meses, foi gritada, pintada, televisionada, e que no Brasil serve para reivindicar os direitos, negados desde 1500, às pessoas de pele escura.
A começar pela terra. O escritor trabalha há dez anos no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e traz as perspectivas dos diversos conflitos de terra no país.
Brasil, aliás, que se diz livre, mas que ainda se norteia por ações que negam aos descendentes de escravizados uma vida com direitos e oferece uma existência marginalizada.
Um trecho do livro, na voz de Bibiana, resume a situação. “Quando deram liberdade aos negros, nosso abandono continuou. O povo vagou de terra em terra pedindo abrigo, passando fome, se sujeitando a trabalhar por nada. Se sujeitando a trabalhar por morada. A mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade.”
Por outro lado, apesar de todo o mal que assombra os personagens de Torto Arado, o autor enxerga resiliência e solidariedade. Como morador da periferia, posso dizer a mesma coisa, sem romantismo. O cantor Emicida diz isso em uma de suas músicas. “É nóiz por nóiz / E se não for assim, não funciona.”
O escritor de Torto Arado também já se disse otimista incorrigível e disse que a escolha dele pela voz do povo, de uma comunidade quilombola, foi uma tentativa de causar a empatia por essas pessoas, que se mantêm, apesar da violência do Estado e da História.
Diferente do Itamar, não sou otimista, mas concordo em uma coisa. Ele como escritor, ou nós, como jornalistas aqui na Agência Mural, nossas intenções, ao contar essas histórias, são as mesmas: gerar empatia e principalmente, as mudanças sociais nas nossas periferias, nascidas em um passado escravocrata.
Lucas Veloso é repórter da Agência Mural de Jornalismo das Periferias e correspondente local de Guaianases desde 2014