Quem pode parar no feriado?

Ingrid Fernandes

Bruno Covas, prefeito da cidade de São Paulo, anunciou na última quinta-feira (18) a antecipação de cinco feriados municipais para poder conter a circulação de pessoas e a propagação do vírus da Covid-19. 

Segundo ele, “temos um prazo que vai do dia 26 até o dia 4 de abril sem dia útil para poder exatamente forçar a cidade de São Paulo a parar. A cidade que nunca parou, a cidade que trabalha”.

Sem entrar no mérito das polêmicas que a medida provocou entre prefeitos das cidades vizinhas e o governador do estado de São Paulo, quero comentar aqui um aspecto desta fala que expressa uma contradição que o estado, do governo federal às prefeituras, além dos empresários, se esforçam para maquiar desde o começo da pandemia.

De acordo com uma pesquisa realizada pelo LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, “quem está sendo mais atingido pela Covid-19 são as pessoas que têm de sair para trabalhar”. 

 “O patrão está doente. Não quero colocar meu filhos em risco, mas preciso trabalhar”, dizia uma empregada doméstica, moradora de Paraisópolis, zona sul da capital, no começo da pandemia. 

Para ela, assim como para a massa de autônomos e de trabalhadores dos serviços essenciais, deixar de trabalhar não é uma opção. Mesmo aqueles que se encontram desempregados são obrigados a sair de casa para se virar nos 30 e garantir a comida na mesa no fim do dia.

A cidade que trabalha nunca chegou a atingir marcas superiores a 60% de isolamento social, de acordo com dados do próprio Sistema de Monitoramento Inteligente do Governo de São Paulo. E, não por acaso, foi no trabalho (e na falta dele) que pudemos observar os principais conflitos dos últimos meses, seja pelo medo de contaminação, pela perda de renda ou pelo desemprego. 

Três dias depois da primeira morte por Covid-19 na cidade de São Paulo, em 2020, houve uma paralisação de atendentes de call center que reivindicavam álcool em gel e a possibilidade de trabalhar em casa para evitar aglomeração nas operações. Manifestações similares ocorreram em diversas cidades do país.

“É um completo absurdo manter o telemarketing funcionando. Juntar muita gente numa sala com pouca ventilação, compartilhando computador e fones de ouvido é a receita ideal para multiplicar o vírus”, dizia o chamado que convocava os operadores para o ato. 

Seguido de uma onda de demissões, e apesar da dificuldade de se fazer home office nas periferias, algumas adequações nesse sentido foram feitas e os call centers logo foram incluídos na lista de serviços essenciais.

Mesmo aqueles cujo trabalho é irrefutavelmente essencial tiveram de enfrentar inúmeros problemas em função da falta de equipamentos de segurança e de insumos para a prevenção do contágio do vírus. Este é o caso dos trabalhadores da saúde, por exemplo, que atravessaram um ano de medo, insegurança e ansiedade.

Enquanto as demissões e falências alcançaram mais pessoas, não foram poucos os que, para contornar o desemprego, tornaram-se entregadores de aplicativo. Wendell, morador do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, contou sua história para a Agência Mural dois meses antes da maior manifestação de entregadores já vista na América Latina.

Enumero esses exemplos para reforçar que feriados podem conseguir reduzir o ritmo da cidade, mas podem não ser eficientes para interromper a circulação do vírus por não atingirem o cerne do problema.

“Fique em casa” é um imperativo que pode soar hipócrita aos ouvidos de um jovem das periferias, como relatam aqui alguns entrevistados, que se veem obrigados a pegar ônibus lotados de segunda a sábado, mas são proibidos de sair aos fins de semana (ainda que a decisão pela aglomeração pode sim ser lida como um reflexo individualista).

Por outro lado, o “vá trabalhar”, propagado como uma oposição lógica ao #FiqueEmCasa, esconde cinicamente a manutenção de um estado de coisas que sobrevive a partir da exploração da força de trabalho. 

E é precisamente ao redor desta exploração que se organizam as cidades e se agravam as desigualdades durante uma crise como a que atravessamos. Com esses contornos a falsa dicotomia entre ficar em casa e morrer de fome ou ir para a rua e morrer de coronavírus é construída.

Neste cenário, o auxílio emergencial aparece como panos mornos sobre os conflitos em ascensão. De acordo com dados fornecidos pelo Dataprev, no ano passado o auxílio impactou a renda de mais da metade da população brasileira, beneficiando cerca de 124,2 milhões de pessoas. 

E por mais que os R$600,00 estivessem longe de ser o mínimo necessário para se manter em meio ao aumento dos custos de vida, foi ele que garantiu a comida na mesa de muitas famílias.

É interessante notar como o aumento vertiginoso do índice de novos casos de Covid-19, no final do segundo semestre do ano passado, coincide com a queda dos valores das parcelas do benefício. 

Agora, uma nova rodada foi aprovada. Mas desta vez, com valores 70% menores do que o apoio dado em 2020. Não é preciso ser um expert para saber que o auxílio é absolutamente insuficiente para a sobrevivência individual de qualquer pessoa. O que garantirá, no entanto, a nossa sobrevivência coletiva?

“Hora de ir para o abate”, brinca meu pai quando sai de casa para fazer plantões no Hospital Geral de São Mateus, na zona leste de São Paulo, como técnico de radiologia. A ironia sempre ganha ares profundos quando lida neste amplo contexto.

Ingrid Fernandes é Social Mídia e correspondente da Agência Mural desde 2020.