Hora de ouvir os especialistas vindos das periferias

Ana Beatriz Felicio
Lucas Veloso

Como jornalistas que moram e escrevem sobre as periferias, é bem comum sermos procurados por outros colegas para dar “uma ajuda” nas raras matérias que eles costumam fazer sobre nossos bairros. 

No ano passado, por exemplo, o Lucas Veloso foi procurado por uma produtora de TV atrás de contatos em Guaianases, na zona leste, para uma reportagem sobre falta de saneamento básico. 

Na mensagem enviada, a produtora disse: “Me manda alguns telefones de personagens que sofrem com isso e podem falar das dificuldades. As fontes ‘mais parrudas’ eu consigo por aqui”. 

Sem a colaboração da Agência Mural, o conteúdo foi ao ar dias depois. No texto, vários moradores das periferias ouvidos tiveram os problemas com a a falta de saneamento básico retratados – a maioria deles eram negros. Por outro lado, os estudiosos que comentaram a situação eram todos brancos. Entrevistados bem distantes daquela realidade. 

No jornalismo, para realizar nossas reportagens, ouvimos diversos tipos de “fontes”, que são as pessoas, órgãos públicos, entidades e consultamos documentos de onde tiramos nossas informações. 

Dizemos que as fontes “especialistas” são aquelas pessoas que falam em um cenário maior, com dados, previsões e contexto, geralmente professores, pesquisadores ou estudiosos de um determinado campo de estudo. Já as fontes “personagens” são aquelas pessoas que servem de exemplo para o tema da reportagem, geralmente para ilustrar a apresentação de dados.

Por exemplo: em uma matéria sobre os impactos do aumento da inflação, o economista entrevistado seria a “fonte especialista”, e uma dona de casa, que compra menos alimentos porque tudo ficou mais caro, é a “fonte personagem”.

Essa é uma prática comum, mas o nosso incômodo é que, de maneira geral, a imprensa mais tradicional enxerga as periferias apenas como um lugar para achar as fontes “personagens”, quase nunca os “especialistas” – estudiosos capazes de fazer uma análise crítica sobre a realidade.

A colega que pediu ajuda sobre a pauta da falta de saneamento básico nem imaginou que poderia haver um economista ali mesmo, em Guaianases, onde ela também colheu os depoimentos das “vítimas”. 

Nas periferias da Grande São Paulo, durante nossa cobertura diária, descobrimos economistas, psicólogos, cientistas sociais, profissionais da saúde e muitas outras especialidades. 

No ano passado, nas primeiras semanas da quarentena, publicamos uma reportagem sobre saúde mental. Nossa fonte principal foi a psicóloga Ludmyla Ribeiro Alves, moradora de Itaquera, zona leste da cidade. 

O impacto dos problemas sociais – que se naturalizam – foi adiantado por ela. Por ser da periferia, está mais atenta àquela realidade ao perceber outras questões muito importantes que podem passar despercebidas por especialistas não moradores de regiões periféricas. 

Para colegas que queiram começar a procurar diversidade também em suas fontes de especialistas, há alguns coletivos e grupos em ascensão.

Na zona leste, por exemplo, o CPDOC (Centro de Pesquisa e Documentação Histórica) Guaianás pesquisa os bairros de Lajeado, Guaianases, Cidade Tiradentes e São Mateus com o objetivo de estabelecer um espaço de referência da memória local. 

O CEP (Centro de Estudos Periféricos) é outro exemplo. Vinculado à Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), é formado por pesquisadores e pesquisadoras que moram em bairros mais afastados do centro.

E como as mudanças não se fazem sozinhas, estamos começando um banco de fontes com especialistas das periferias. Se você conhece algum estudioso ou estudiosa que viva nos extremos das cidades, ou se você é essa pessoa, basta enviar uma mensagem por este formulário. 

Um jornalismo mais plural é construído não apenas por quem o faz, mas por quem aparece nas matérias. Os moradores das periferias são mais que objetos de estudos e personagens de histórias tristes, são também detentores de conhecimento.

Ana Beatriz é repórter da Agência Mural e correspondente de Carapicuíba desde 2018

Lucas Veloso é repórter da Agência Mural e correspondente local de Guaianases desde 2014.