Pobre é o país que taxa livros a quem já não pode comprar

Vagner de Alencar

Em tempos difíceis, de uma crise sanitária sem precedentes, com pessoas passando fome, precisando trocar o gás pela lenha, definitivamente o livro está longe de se tornar um item da “cesta básica” do brasileiro. Está difícil ter acesso até mesmo ao básico arroz e feijão. 

Enquanto o governo brasileiro parece desejar um Brasil com mais armas (vide os últimos decretos de ampliação do acesso a armamento e munições) e menos livros, neste dia 23 de abril se celebra o dia mundial do livro. 

Uma data que cada vez tem poucos motivos para comemorarmos, em um país onde a Receita Federal diz que pobres não consomem livros como justificativa para aumentar impostos. 

Na verdade, é preciso formar leitores e fazer o livro chegar até eles. Afinal, a leitura sim é uma verdadeira arma para a formação de qualquer indivíduo. 

Valorizar os saraus, as feiras literárias, os novos escritores das periferias, que consigo podem ajudar a atrair mais amantes da leitura. 

Livro Cidade do Paraíso Ha vida na maior favela de São Paulo

Leitores como a estudante Maria, que em um encontro virtual há algumas semanas, me revelou: “Não sei ler direito, mas pedi pro meu filho comprar seu livro”. 

A obra em questão é “Cidade do Paraíso – Há vida na maior favela de São Paulo”, livro que revela o cotidiano de uma das maiores favelas de São Paulo, publicado em 2014 pela Primavera Editorial, uma editora independente.

O bate-papo virtual fazia parte de uma atividade com estudantes de EJA (Educação de Jovens e Adultos) do oitavo ano, do colégio Santa Cruz, em São Paulo. 

Maria passou dos 40 anos, e disse ainda ter dificuldades para ler a pergunta feita durante a sabatina sobre meu trabalho como jornalista, na Agência Mural.

Todos os vinte alunos eram pobres e retornavam à sala de aula (virtual) para seguir os estudos interrompidos no passado, por diferentes motivos.

A medida defendida pela Receita busca alterar a lei de 2004 que isenta a indústria do livro do PIS/Cofins. 

O órgão do Ministério da Economia sugere unificar esses impostos e transformá-los no CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), tributo que teria alíquota de 12%. A arrecadação seria destinada, segundo a RF, para políticas mais direcionadas.

Essa taxação, no entanto, vai impactar o bolso de quem compra, em consequência do aumento dos custos de quem produz, as editoras, em especial as editoras independentes.  

Antes da pandemia, biblioteca comunitária funcionava em cemitério em Parelheiros (Anderson Meneses/Agência Mural)

Em entrevista ao podcast “Conversa de Portão”, do Nós, mulheres da periferia, a escritora Cidinha Silva comentou sobre o risco de fechamento.

“A conta nunca iria fechar. As editoras já pagam impostos. O imposto proposto, na verdade, tem como objetivo robustecer o projeto de emburrecimento da população brasileira, esse projeto de vilipêndio à cultura e à educação”.

Ter dificuldades na leitura e ser pobre não são sinônimos de não querer comprar ou se interessar por livros. Está aí a estudante Maria e seus colegas, jovens e adultos, para comprovar. 

“Vagner, quando você vai lançar o próximo livro?”.

“Vagner, minha amiga já queria pedir seu livro emprestado. Eu disse que só depois que eu ler primeiro”.

Quem sabe, neste momento, Maria esteja de sua casa, na periferia, lendo sobre os becos e as vielas de Paraisópolis. Assim como Fabiana, uma colega minha de infância na Bahia. Ao contrário da paulistana, a baiana nunca pôde comprar um livro ao longo de seus mais de 30 anos.

Numa mensagem, confessou sonhar em ler o “Cidade do Paraíso”, o que aconteceu ano passado em minha última viagem à terrinha, quando a presenteei com a obra, com dedicatória e tudo. 

Os pobres também querem ler (e não só publicações didáticas na escola). Acredito que apenas o governo não sabe ou não quer ler isso. 

Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias