Do bunker de bandidos à tragédia do Jacarezinho

Lucas Veloso
Paulo Talarico

Em setembro do ano passado, um texto sobre tráfico de drogas que denominava toda a região da Maré, no Rio de Janeiro, como bunker de bandidos, causou grande repercussão. 

Em texto aqui no blog, comentamos por que as periferias não aceitam mais ser rotuladas dessa forma. “Se alguém tiver suspeitas sobre um residencial luxuoso, ninguém irá chamá-lo de bunker de bandidos. Na periferia deveria ser a mesma coisa”, dizíamos no texto. 

Oito meses depois, a tragédia do Jacarezinho reforça a necessidade de nos atentarmos a outra rotulação. O quanto ter ou não antecedentes criminais se torna muitas vezes justificativa do discurso oficial para a tragédia e para o asssassinato de pessoas mais pobres que vivem nas periferias. E o quanto isso pode ser replicado na imprensa.

A ação da polícia que culminou na tragédia no Jacarezinho, onde 28 pessoas morreram, buscava, segundo o estado, combater o aliciamento de crianças e adolescentes para o tráfico de drogas – versão que mudou ao longo dos dias. 

Parte da imprensa anunciou que a ação tinha terminado com a morte de dezenas de “suspeitos”. Todos sem nome.

Não havia informação disponível sobre quem eram as pessoas mortas, exceto o policial, e em muitos casos já eram tratadas dessa forma.

Enquanto relatos dos moradores davam conta de invasões a casas, tiros para todos os lados e medo na favela, repetiu-se um discurso oficial sem tentar juntar mais peças neste quebra-cabeça. Uma maneira cruel de calar as vozes daquela comunidade. 

O discurso oficial trazia que as mortes tinham sido de suspeitos, bandidos, traficantes. De modo geral, o nosso erro, enquanto imprensa, é comprar o discurso oficial, que chega pronto apontando quem “mereceu” morrer e quem são os heróis da situação.

Segundo os registros de ocorrência, 24 corpos foram removidos sem perícia no Jacarezinho. Por quê?

Repetidamente é dado destaque à questão dos antecedentes criminais, mesmo de quem já cumpriu pena, mesmo de quem não era alvo da operação e foi morto. E a polícia não existe para matar, é investigar, prender se tiver mandado. 

Hoje, ao menos essa não é uma narrativa que para de um lado só, e pelo próprio jornalismo tem sido possível enxergar as falhas. 

Uma fala daquele dia resume a ideia. “Mãe nenhuma pare traficante, não. Mãe, pare gente. E mãe nenhuma merece isso”.

Moradores das comunidades, como o advogado Joel Luiz Costa, coordenador executivo do IDPN (Instituto de Defesa da População Negra), de imediato narraram a situação sobre como essa ação traz poucas mudanças no combate ao tráfico. Faz apenas do bairro um cenário de guerra. 

Paula Gonzaga, viúva de Bruno Brasil, disse que o marido não era bandido. “Era trabalhador, mas estava desempregado”, afirmou. 

A esposa relatou que ele saía todo dia na madrugada para comprar água e doces no mercado para vender na rua. Segundo ela, sustentava a casa desta forma. Morreu com um tiro na cabeça. Outros relatos foram publicados pela própria Folha

Além disso, organizações que atuam nas favelas, como o Voz das Comunidades, também trazem outras histórias, como desmentir montagens de familiares das vítimas armados. (Sim, para se justificar tragédias do tipo sempre recorrem a fake news, algo que aconteceu com os jovens mortos em Paraisópolis há dois anos).

Morta em 2018, a vereadora Marielle Franco também teve seu nome vinculado ao tráfico de drogas, que em tese, justificaria o crime. 

Em um dos textos no El País, publicado em agosto de 2015, logo após a maior chacina paulista, a jornalista Eliane Brum descreve como é dolorosa a insistência das famílias para provar que seus familiares não ‘mereciam morrer’, pois eram trabalhadores, de família e do bem. 

É algo recorrente para pretos e pretas do Brasil. País que nesta quinta-feira (13) completa oficialmente 133 anos do fim da escravidão, enquanto na prática ainda restringe acessos, onde “preto parado é suspeito e correndo é ladrão”, onde “bandido bom é bandido morto”. 

Já passou da hora de mudar essa chave.

Afinal, são vidas, como todas que perdemos no Jacarezinho listadas abaixo.

André Frias (policial), Bruno Brasil, Caio Da Silva Figueiredo, Carlos Ivan Avelino Da Costa Junior, Cleyton Da Silva Freitas De Lima, Diogo Barbosa Gomes, Evandro Da Silva Santos, Francisco Fábio Dias Araújo Chaves, Guilherme De Aquino Simões, Isaac Pinheiro De Oliveira, John Jefferson Mendes Rufino Da Silva, Jonas Do Carmo Santos, Jonathan Araújo Da Silva, Luiz Augusto Oliveira De Farias, Márcio Da Silva Bezerra, Marlon Santana De Araújo, Matheus Gomes Dos Santos, Maurício Ferreira Da Silva, Natan Oliveira De Almeida, Omar Pereira Da Silva, Pablo Araújo De Mello, Pedro Donato De Sant’ana, Ray Barreiros De Araújo, Richard Gabriel Da Silva Ferreira, Rodrigo Paula De Barros, Rômulo Oliveira Lúcio, Toni Da Conceição e Wagner Luiz Magalhães Fagundes. 

Lucas Veloso é cofundador da Agência Mural e correspondente de Guaianases

Paulo Talarico é editor-chefe de jornalismo da Agência Mural