Pluralidade no jornalismo deve ir além do mês de junho

Caê Vasconcelos

Se você parar para olhar os telejornais das principais emissoras de televisão do país não verá pessoas LGBTs. Pelo menos não assumidamente LGBTs. Quando encontramos, normalmente são brancas, cisgêneras (quem se identifica com o gênero de nascimento) e são de classe média (para cima). 

Infelizmente, esse não é um problema apenas das emissoras de televisão.

Essa falta de diversidade está em quase todas as redações da imprensa nacional, independentes e nativos digitais. Isso também é muito refletido nas premiações de jornalismo que, até hoje, são lotadas de pessoas cisgêneras, brancas e em sua maioria homens. É como se o jornalismo feito por pessoas LGBTs (principalmente trans) e/ou negras fosse invisível.

Foi preciso que três homens negros criassem, em 2020, um prêmio para reconhecer os trabalhos de pessoas negras e transgêneras. O Prêmio Neusa Maria de Jornalismo foi idealizado pelos jornalistas Pedro Borges, Matheus Moreira e Luís Adorno para que o trabalho de mais de 150 jornalistas não-brancos e trans ganhasse visibilidade.

Caminhada realizada em janeiro aborda a visibilidade trans. Em 28 de junho há o Dia Internacional do Orgulho LGBT (Caê Vasconcelos/Agência Mural)

O problema começa na própria seleção. Quem se lembra que a CNN, quando chegou ao Brasil, listou as universidades necessárias para entrar no veículo? No recrutamento, só havia universidades que recebem majoritariamente estudantes dos bairros mais ricos (assim como o Emicida, cria de uma quebrada próxima da minha, na zona norte de São Paulo, também não gosto da palavra “elite”).

Aliás, eu também não gosto do termo “diversidade”. Diversidade é uma palavra batida e esvaziada em que empresas acreditam que ter uma pessoa que preencha alguma das minorias por direito basta. Eu prefiro pluralidade. Porque até entre os iguais somos plurais (e ainda bem).

Se os grandes chefes do jornalismo do país entendessem que as quebradas são muito mais do que “bunkers de bandidos“, talvez olhassem com mais carinho para esses territórios e entendessem que é ali que a pluralidade do nosso país vive. 

Curiosamente, essa ausência de representatividade não está nas redações nascidas dentro das quebradas e favelas do país. 

É só olhar organizações como a nossa aqui da Agência Mural, do Voz das Comunidades, que faz a cobertura das favelas do Rio de Janeiro, ou do Desenrola e Não Me Enrola, que cobre territórios periféricos em São Paulo. Essas redações acolhem realmente pessoas negras e LGBTs – assim como as nossas quebradas.

Claro que existem pessoas LGBTI fora de territórios periféricos, eu mesmo moro no centro da cidade de São Paulo atualmente – mas foi uma decisão unicamente de acesso e mobilidade.

Da minha quebrada, a Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte, eu demorava duas horas para chegar no centro da cidade. Dependendo de onde a pauta me esperava, acabava chegando nos locais depois que já não tinha mais matéria para fazer. O jornalismo me obrigou a me “centralizar” para conseguir viver dele. 

Evento pela diversidade na Avenida Paulista, antes da pandemia (Paula Rodrigues/Arquivo Agência Mural)

Quando ainda estava na universidade (me formei na FIAM-FAAM, longe de ser uma faculdade da burguesia, apesar de ser privada), tomava muitas broncas de um chefe em um dos estágios que tive por chegar atrasado. E eu sempre saía mais cedo, mas a falta de transporte público no meu bairro criava um abismo da Cachoeirinha até a Avenida Paulista.

E os chefes não querem isso. Eles querem quem possa chegar cedo e ficar até tarde, porque mora perto, quem pode ir e voltar do trabalho andando ou quem demora só uns minutinhos no transporte público. Eles não querem quem mora longe e, em uma greve, corre o risco de não trabalhar porque não tem como chegar no local.

Hoje moro no centro, como citei anteriomente, mas sou um homem trans e bissexual (que além de estar bem fora do armário, fala muito sobre a temática). 

Grandes redações não querem pessoas trans capazes de fazer mudanças profundas. Quando um corpo trans adentra um espaço, ele muda tudo ali: ao apontar os privilégios do cis-tema (branco, aliás). Cis-tema com C mesmo, que demonstra como a cisgeneridade compulsória (que é quando a regra é ser cisgênero) prejudica a nossa sociedade.

Em dezembro de 2020,  escrevi sobre isso para o projeto “Jornalismo no Brasil em 2021”, da Abraji e Farol Jornalismo. O meu pedido era simples, nada impossível: “Em 2021, precisamos de um jornalismo para todas as pessoas LGBTs”. 

Eu esperava que pudéssemos, principalmente enquanto corpos trans, ocupar mais os espaços dentro das redações jornalísticas, mas essa ainda não é uma realidade. Ainda sou um dos únicos a assinar reportagens em sites (e, vez ou outra, tirar uma lasquinha das emissores de televisão, como quando fui um dos entrevistadores do Roda Viva, maior programa de entrevistas do país, e que, antes de mim, nunca tinha recebido um jornalista trans).

Sabe o que é mais doido? É que todo mundo ganha com a pluralidade de corpos e raça nas redações. Só assim conseguimos fazer um jornalismo humanizado, com menos erros como a reprodução de LGBTfobia e racismo nos títulos. 

Demonstra que todos fazemos parte da mesma população e por isso temos direito a participar de todos os espaços, inclusive os profissionais.

Não temos mais tempo para um jornalismo que não colabore com as lutas pelos direitos humanos e da democracia.  E só vamos atingir isso transformar a realidade do país quando tivermos a imprensa lotada de pessoas LGBTs, de todas as etnias e territórios. E quando essa pluralidade for além do mês de junho.

Caê Vasconcelos é correspondente da Agência Mural