A nossa história perdura à revelia do fogo
Ingrid Fernandes
Quando vi as imagens do fogo consumindo um dos maiores acervos de cinema da América Latina em 29 de julho, um refrão cantou dentro de mim: “meu olhar transbordou na esperança do fogo apagar; meu peito calou, sem lágrimas para derramar”.
A música é interpretada pelo sambista paulibucano (paulista e pernambucano) Toinho Melodia, um grande mestre.
Mas ele não canta sobre nenhum museu, nem lamenta o destino dos arquivos que viraram pó e fumaça. O samba, na verdade, denuncia a especulação por trás do fogo que consome sistematicamente os barracos nas favelas do Brasil inteiro, a história de vida das pessoas.
Apesar de ocupar um outro lugar no noticiário, a Cinemateca Brasileira queimou com esta mesma sorte dos incêndios acidentais bem planejados. Alguns dias antes, a repercussão escandalosa de chamas mais tímidas preservaram apenas a estátua do Borba Gato, que contará com financiamento privado para sua restauração.
No caso da Cinemateca, chega a ser macabra a ironia de que a mesma invenção elaborada para registrar as imagens do mundo real queimando o papel participe como condutora das chamas deste espetáculo da política de esquecimento.
Na outra ponta da analogia, é cruel ver a casa de quem trabalha tanto para fazer a maquinaria da cidade funcionar simplesmente virar cinzas — também não por causa da gambiarra ou do botijão, a quem culpam por má fé.
Era 24 de janeiro de 1964, na zona sul do Rio de Janeiro, o Corpo de Bombeiros incendiou os mais de 500 domicílios do Morro do Pasmado a mando do então prefeito Carlos Lacerda, desabrigando cerca de 2 mil pessoas.
Em seu lugar, hoje o morro acomoda um mirante que da favela só carrega o mesmo nome. Reza a lenda que, em breve, um museu em homenagem às vítimas do Holocaustro será inaugurado para ornar com o obelisco de 20 metros que reina ali.
Diante da beleza da enseada de Botafogo, é quase impossível imaginar que exista um samba que também conte sobre como ali o “fogo no morro alastrou”. Afinal, como se escolhe o que vamos lembrar?
O exercício diário de um jornalismo periférico envolve refletir sobre essa responsabilidade. O papel de registrar histórias que tradicionalmente ficam relegadas ao esquecimento, de moradores que estão nas quebradas e são fundamentais para a constituição da história da cidade e influem no desenvolvimento econômico, cultural e político. É o que busca fazer a Agência Mural e outras iniciativas do jornalismo das quebradas.
Em um mundo onde a distância entre a sua casa e o cinema é geralmente proporcional à chance de seu lar pegar fogo, não é de se estranhar o lugar que a denúncia ocupa na arte feita por quem labuta, como canta Toinho e tantos outros que nunca beberam “da bebida de quem está no poder”.
O espaço urbano é um nó que articula a tensão permanente da exploração e concorrência. A cidade, como se sabe, sempre foi um fenômeno de classe. Nela a produção cultural se inscreve igualmente como um um lugar de conflito, onde as decisões de transmissão da memória entram em disputa e a história ganha forma.
A memória, tão esburacada quanto qualquer arquivo, depende de circunstâncias de partilha de experiência — é só aí que ela pode ser nossa. A roda de samba, lugar de mediação entre o testemunho e a História, que eu considero até mais que o cinema, mantém de pé histórias que o fogo não pode arder. A menos, é certo, que queimem todos nós.
Sem a ilusão dos que se dizem vencedores desta guerra social, nunca poderemos dizer que não há nada para se ver nos escombros da barbárie. É preciso estreitar os olhos e vislumbrar o que está por baixo dos arranha-céus, perseguir a memória do fogo em cada coisa que não queimou, comparar o que vemos no presente com aquilo que pode ter desaparecido.
A nossa história perdura à revelia do fogo.
Ingrid Fernandes é responsável pela estratégia de distribuição de conteúdos da Agência Mural, cuida das redes sociais e às vezes escreve aqui no blog