Ser lésbica, periférica e jornalista

Tamiris Gomes

A visibilidade, segundo o Google, é atributo do que é ou pode ser visível, ou percebido, pelos demais dentro da sociedade. E há muitas datas no colendário que sugerem esse diálogo, como o Dia Nacional da Visibilidade Lésbica, em 29 de agosto. 

Nesse mesmo dia, em 1996, foi realizado o 1º Senale (Seminário Nacional de Lésbicas) no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro. Um evento dedicado a discutir políticas públicas de combate à lesbofobia e cobrar o Estado pelo reconhecimento dessas responsabilidades.  

A invisibilidade social das mulheres lésbicas atravessa muitas camadas que se relacionam com a opressão e com a discriminação. É preciso olhar para os diferentes marcadores. Ser mulher, lésbica, negra, periférica, de classe socioeconômica mais baixa, ou mais vulnerável à violência, é outro lugar de luta se comparado à mulher, lésbica, branca, do centro da cidade. 

“Só parei para pensar na complexidade disso quando saí da periferia e entrei na faculdade, no ambiente de trabalho. Aí a ficha caiu. Acho que a galera tem uma visão de que a mulher lésbica periférica é aquela que é o ‘tomboy’ [estilo de moda que mescla peças ditas masculinas com femininas] e que lésbica mesmo é a do centro da cidade, de chão de taco, vegana, branca”, diz Tatiane Araújo, jornalista e correspondente da Agência Mural em Barueri, na Grande São Paulo. 

Reproduzir esse estereótipo do que é ser lésbica na periferia, apontado por Tatiane, reforça ainda mais a invisibilidade e impede que mulheres se sintam confortáveis em se “assumir” em outros ambientes, como no trabalho. 

Segundo pesquisa da consultoria PwC, divulgada em março de 2020, apenas 38% das mulheres atraídas por mulheres falam abertamente sobre a orientação sexual nos ambientes profissionais — ainda que 65% se sintam confiantes com a sexualidade. 

“Nunca me escondi. Até porque se eu tiver que esconder um pouco de quem eu sou, não vale a pena pra mim estar naquele lugar, entende? Nunca tive problema [no ambiente profissional], mas sei que infelizmente essa não é a realidade para todas”, conta Luana Nunes, também jornalista e correspondente de Parelheiros, extremo sul da capital. 

Quando entrou na faculdade de jornalismo, Luana chegou a ser questionada sobre o seu “perfil”, como se existisse um para ser jornalista. “Tudo isso pelo simples motivo de que eu cortava o cabelo curto, usava roupas mais largas. Escutei isso até mesmo de professores do curso. Depois, nas redações, não tive questões. Para mim é tranquilo ser uma uma jornalista sapatão. Não escondo.”

“Acham que sapatão só pode ser duas coisas: ou motorista ou professora de educação física. O que é incrível, mas temos também outras paixões. Podemos ser jornalistas, fotógrafas, médicas, até astronautas. Podemos ser tudo”, pontua Luana.  

A lesbofobia mora nesses detalhes, de apontar padrões nos outros. E se tratando de redações e ambientes da área da comunicação, ainda há um caminho para garantir acolhimento e diversidade. 

“Uma redação diversa evita a disseminação de informações falsas ou equivocadas, ou seja, uma redação diversa tem mais chances de cometer menos erros ou de reproduzir menos preconceitos institucionais”, sugere Tatiane, de Barueri. 

Fora as abordagens constrangedoras sobre a sexualidade. “O que me chateia é que automaticamente, quando a pessoa descobre que me atraio por mulheres, a primeira coisa que uma colega hétero pergunta é se eu já tive interesse nela. Ou quando deslegitimam a minha união [sou casada] por ser duas mulheres”, diz Tatiane. 

Para a correspondente de Parelheiros há também certa superficialidade em como o tema é tratado pelas empresas de jornalismo. 

“Tenho visto as redações com bastante diversidade nos últimos tempos, mas também tem muita coisa superficial. Por exemplo, por que a gente tem que falar sobre as lésbicas só em agosto? Eu sou sapatão só em agosto? Você vai me tratar bem só em agosto? Quero que você entenda como me tratar em setembro, julho, março… É importante falar sobre diversidade sempre, todo dia, toda hora”, desabafa Luana. 

As jornalistas da Mural sabem da importância de ocupar cada vez mais esses espaços profissionais e cobram por ações efetivas que naturalizam a pluralidade. 

“Em dois ou três processos seletivos que participei tinha que preencher formulários com perguntas sobre raça e orientação sexual. Daí já vem uma abertura boa, mas o que será feito com essa informação? Vão mudar alguma coisa no ambiente de trabalho com os outros funcionários? A informação não pode morrer ali. E como vão te acolher?”, questiona Luana. 

Apesar dos percalços, elas se orgulham de quem são. “Me orgulho muito da minha paciência e respeitar os meus limites, meus gostos, minhas vontades para entender quem eu sou”, conta Tatiane.

 Luana diz que em sua caixinha há apenas uma gaveta e nela está dentro o fato de ser jornalista, negra, periférica e uma mulher lésbica. “Seria estranho se tivesse que ser só a metade. Sou orgulhosa, óbvio, de ser quem eu sou e poder calar muita boca por aí, quebrar muito estereótipo. E voar, porque o mundo está aí pra gente fazer isso, né?”. 

É. Volto lá no início do texto para o significado de visibilidade que aparece no Google. E se fosse possível acrescentaria que ser visível é também poder voar. 

Tamiris Gomes é editora-assistente da Agência Mural