O trabalho infantil e a voz das crianças no contexto periférico
Aline Kátia Melo
A maioria de nós, moradores das periferias, tivemos no contexto familiar ou presenciamos alguma situação na qual crianças, especialmente meninas, precisaram cuidar dos irmãos mais novos ou ajudar no trabalho doméstico.
Esse assunto fez parte de um bate-papo direcionado à rede de correspondentes locais da Agência Mural na semana passada, sobre infância e trabalho infantil.
Participaram da conversa a jornalista e pesquisadora Juliana Doretto e as procuradoras do trabalho Ana Maria Villa Real e Luciana Marques Coutinho, respectivamente coordenadora e vice-coordenadora nacionais da Coordinfância/MPT (Coordenaria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho).
“Toda forma de atividade econômica e/ou de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remunerada ou não, exercida por criança e adolescentes que estão abaixo da idade mínima para entrada no mercado de trabalho.”
Logo no início da apresentação, elas nos trouxeram esta definição do conceito de trabalho infantil, o que me fez lembrar de situações de trabalho infantil vistas até hoje. E também lembranças do passado, como no caso da minha família.
Meus pais nasceram e cresceram no interior do estado de Alagoas. Meu pai relatava ter trabalhado na roça desde criança, enquanto minha mãe, por ser a segunda filha, mas primeira nascida mulher, ajudou a cuidar dos irmãos mais novos.
Influenciada um pouco por essa cultura, por vontade própria, decidi emitir minha carteira de trabalho aos 14 anos, em 1997. Tive o meu primeiro emprego aos 17, conciliando o trabalho no período da tarde com o terceiro ano do ensino médio, de manhã.
Ao contrário da trajetória dos meus pais e de muitas outras famílias ao meu redor, minha mãe nunca exigiu que eu e minha irmã fizéssemos atividades domésticas. Ela preferia que gastássemos nosso tempo livre em casa brincando, estudando, fazendo lição.
Prova disso é que chegou a nos matricular em academias de dança e cursos de música. Mas também ouviu das pessoas ao seu redor que precisávamos “trabalhar”.
Infelizmente costumava-se ter um olhar romantizado para o trabalho infantil, principalmente porque na época em que foram crianças, não existiam instrumentos formais de proteção como o Estatuto da Criança e do Adolescente.
O ECA surgiu em 1990, há 31 anos, no mesmo ano em que foi criado o Conselho Tutelar, órgão responsável por assegurar o cumprimento dos direitos do estatuto de forma “desjudicializada”, ou seja, que as situações de violações possam ser solucionadas sem depender da intervenção da autoridade judiciária.
Apesar de políticas como o ECA, a expectativa dos adultos para as crianças ainda é muito dedicado ao seu futuro adulto, com a pergunta sobre “o que elas querem ser no futuro” sendo recorrente desde cedo, como se o único objetivo da vida delas fosse ser constantemente preparadas para um dia entrar no mercado de trabalho.
“E tudo que a gente faz é pensar que quando ela crescer, vai usar ‘isso’ quando ela for trabalhar”, afirmou a pesquisadora e professora da PUCCampinas Juliana Doretto.
Percebo esta preocupação com o futuro profissional das crianças vindo de pais e mães de origem mais pobre. Não é incomum escutar de amigas o desejo de pagar, o quanto antes, curso de inglês para os filhos, assim que o orçamento permitir.
E o papel do jornalismo neste tipo de cobertura? Para Doretto, as notícias sobre infância e trabalho infantil parecem ajudar a reforçar este olhar que pensa no mercado profissional.
“E isso vai dizendo que a criança não precisa brincar, a criança não precisa ser feliz hoje. O importante é ela se preparar para o futuro”, lamenta.
Ainda sem previsão de lançamento, a procuradora do trabalho Ana Maria Villa Real afirma estar finalizando um guia para orientar a cobertura jornalística sobre o trabalho infantil, com o apoio da Coordinfância, da ANDI (Agência de Notícias dos Dieitos da Infância) e da OIT (Organização Internacional do Trabalho).
Enquanto o material não é divulgado, Doretto, que pesquisa a relação entre infância, adolescência e mídia, com foco no jornalismo, indica algumas orientações básicas como garantir a voz da infância nos meios de comunicação, evitar identificá-las apenas pelo primeiro nome ou apelido ou usar imagens das crianças sem a voz delas, e também que os pais falem em nome das crianças.
Na semana que se comemora esse mundo infantil, menos trabalho e mais brincadeira e educação para sonharem. E por um jornalismo que conte essas histórias a partir de seus pontos de vistas.
Aline Kátia Melo é correspondente da Agência Mural