Do ataque à meia-entrada às cotas nas universidades

Paulo Talarico

Nos últimos dias, um projeto de lei estadual que determinava o fim da meia-entrada para atividades culturais foi vetado pelo governador em exercício Carlão Pignatari (PSDB). Mas a aprovação dele pelos deputados estaduais e o texto que justificava a proposta levanta uma reflexão importante sobre o que vem por aí na defesa de direitos nos próximos anos (ou meses). 

A proposta previa o fim desse benefício para estudantes, garantido atualmente pela lei federal 12.933/2013, o que levou ao veto. 

Na justificativa do projeto, o autor do texto afirma que na tentativa de garantir mais “direitos” para um determinado grupo (os estudantes), os proprietários de casas de show dobram o preço dos ingressos, entendendo que praticamente ‘todos’ conseguem a meia-entrada.  

Afirma que é injusto com trabalhadores e pessoas de baixa-renda que não têm esse desconto. Por isso, propõe que de 0 a 99 anos, todos receberiam a meia-entrada – todos teriam ‘direitos’ com ninguém recebendo nada. 

O deputado Artur do Val conclui assim que a lei resolveria “por uma artimanha retórica, um problema econômico”. 

Curioso que não há uma busca para pensar em como trabalhadores, moradores das periferias, possam ter mais acesso a cultura. Diz apenas que o ideal é que não tenha para ninguém. 

Também ignora que a lei atual determina que 40% dos ingressos sejam oferecidos com meia-entrada. Ou seja, 60% podem ser cobrados como entrada inteira, diferentemente do que aparece no texto. 

Mas, para além da discussão desse tema, um detalhe dessa justificativa demonstra um pouco do caminho que estamos tomando. Ao reclamar dos estudantes que ainda dispõem da meia-entrada, ele comparou com as cotas para as universidades “que colocam candidatos em universidades e concursos públicos à frente de outros por causa da cor da sua pele – critério absolutamente irrelevante para medir talento ou dedicação.” 

Nunca se tratou disso, é bom dizer. 

As cotas são uma pequena reparação. Reparação para descendentes de populações que foram escravizadas durante séculos e, por conta disso, começam a vida em situação marginalizada, sobrevivendo, se desdobrando para conseguir uma possibilidade melhor.

População que foi traficada mesmo quando a lei brasileira já não permitia. População que ao conquistar a abolição não teve nenhuma reparação. Faz parte da nossa história. 

Não à toa, demoraram tanto para aparecer com mais força em ambientes como universidades criadas para formar as elites em São Paulo. O que vem mudando.   

Aprovada em 2012, a Lei de Cotas ajudou no crescimento de pessoas negras nas universidades. Pela primeira vez, o número de mulheres pretas nas instituições públicas representa a maioria.

Essa legislação completa 10 anos em 2022. A proposta entrará em revisão ano que vem e os ataques a ela têm se repetido constantemente.

E não é dizer que uma pessoa que seja pobre não tem que ter acesso se não for negra. A própria Lei de Cotas determina a reserva de vagas a partir da renda e de quem estudou em escola pública inicialmente.

Na sequência utiliza os dados populacionais e a porcentagem de cada população para ajudar na definição das vagas.

São detalhes que muitas vezes não são informados por quem ataca os direitos. Por isso, explicar essas informações será cada vez mais fundamental, mesmo que seja repetitivo.

Em um país que muda nome de programas ou os exclui por questões partidárias e interesses eleitorais, é necessário enfatizar que não dá para retroceder nesses avanços que tem possibilitado um pouco mais de diversidade em espaços como as universidades ou, mesmo, nas salas de cinema.

Em tempo. Recebi dois comentários sobre este texto e gostaria de acrescentar, pois fazem muito sentido. 

a) Francisco Kenji me mandou um email em que comenta sobre o trecho em que disse ser uma reparação e concordo com a observação dele de que: “Dada a magnitude da violência histórica, nem se fala em reparação. As cotas são algo muito maior que reparação para os pretos. São a oportunidade que a sociedade tem para promover a discussão na academia de todos os assuntos nacionais, de forma irmanada.”

b) E uma correspondente da Agência Mural cita para mim que as cotas apenas nunca foram suficientes, dada a dificuldade de permanência dos estudantes depois de ingressarem. 

Paulo Talarico é editor-chefe da Agência Mural