‘Ser mulher e ser da periferia é duas vezes mais difícil’, diz coletivo
“Em uma sociedade machista, ser mulher já é um grande desafio. Ser mulher e ser da periferia torna essa missão pelo menos duas vezes mais difícil.”
Elas são Jéssica Moreira, Semayat Oliveira, Cíntia Gomes, Bianca Pedrina, Mayara Penina, Priscila Gomes, Regiany Silva, Lívia Lima e Aline Kátia Melo. Todas moradoras de diferentes bairros da periferia de São Paulo e com um propósito em comum: Empoderar, dar visibilidade e voz às inúmeras mulheres que vivem nas bordas da cidade – compartilhando suas histórias, dificuldades e anseios. Juntas, elas dão vida ao “Nós, Mulheres da Periferia”.
Neste domingo (8/3), Dia Internacional da Mulher, o coletivo completa um ano de atividade e busca desconstruir a forma estereotipada e estigmatizada como são retratadas todas essas mulheres. O Mural conversou com as integrantes – todas correspondentes e parceiras do Blog – a respeito de como tem sido a experiência dessa atuação.
Mural: O “Nós, Mulheres da Periferia” surgiu a partir do trabalho das integrantes no Blog Mural. Como foi o processo de formação?
Nós, Mulheres da Periferia: O coletivo é formado por oito jornalistas e uma designer, todas moradoras de bairros da periferia de São Paulo. No dia 7 de março de 2012, quatro das nove integrantes publicaram artigo na seção “Tendências/Debates” do jornal Folha de S. Paulo, atentando para a invisibilidade e aos direitos não atendidos de uma parte das mulheres – as que moram em bairros periféricos de grandes metrópoles. O texto obteve grande repercussão, sendo replicado em outros veículos e encontrou eco entre nossas iguais, outras jovens ou não tão jovens mulheres da periferia que finalmente tinham se sentido representadas, lembradas e retratadas. As autoras, para escrevê-lo, se basearam principalmente em suas vivências, visões e experiências cotidianas, que perceberam que o vazio de representatividade não era sentido apenas por elas. A partir daquele momento, iniciou-se um processo de pesquisa e consolidação do coletivo. A primeira ação foi o lançamento de uma página no Facebook, em 8 de março de 2014, quando foi publicado o artigo “Nós, Moradoras da Periferia”, também na seção “Tendências/Debates”, jogando luz à questão do direito à moradia para as mulheres de baixa renda.
O que é ser mulher nas periferias?
Em uma sociedade machista, ser mulher já é um grande desafio. Ser mulher e ser da periferia torna essa missão pelo menos duas vezes mais difícil. Entendemos que homens e mulheres sofrem com a falta de serviços públicos, como saúde, moradia e educação. Porém, a mulher, de forma específica, sofre mais, uma vez que na maioria das vezes é ela a chefe do lar. Sofre mais nos longos percursos de ônibus ou metrô, pois além do aperto, sofre abuso sexual. Sofre mais na questão da educação, uma vez que ela é quem cuida da vida escolar do filho e sobre mais na questão da saúde pública, pois precisa utilizá-la para questões ginecológicas bem mais cedo que o sexo masculino. É ela que visita o marido quando vai preso e sofre mais quando o filho morre ou entra para o tráfico de drogas. Sofre mais quando não tem uma moradia fixa, já que isso a deixa à mercê da violência do próprio marido. Sofre mais ao subir a rua escura, já que seu maior medo não é o assalto, mas o estupro. É impossível trabalhar por perto e estudar por perto, o que nos obriga a sair cedo de casa e voltar depois da meia noite. Não há opções de lazer. E sair de casa para se divertir significa voltar no primeiro ônibus do outro dia. Ser mulher na periferia é conviver com as diferenças geográficas impostas por um sistema que afasta o pobre cada vez para mais longe, enquanto a especulação imobiliária encarece tudo, até em nossos bairros.
Qual a importância de existir um coletivo para falar a respeito das mulheres moradoras das periferias e como o coletivo tem colaborado para o empoderamento dessas mulheres?
A comunicação local é um dos eixos fundamentais de nosso site, pois acreditamos que a partir da comunicação, é possível trabalhar o reconhecimento e identidade de certos grupos de determinadas regiões. Além disso, queremos ser uma ponte de contato entre a mulher da periferia e a grande mídia, pautando-a para os desafios ainda presentes na vida dessas mulheres. Nosso objetivo é fomentar o empoderamento das mulheres e dar visibilidade aos direitos não atendidos, problematizar acerca dos preconceitos e estereótipos limitadores, que se cruzam com as questões de classe social, etnia e raça, muito presentes em razão da localização geográfica das residências das moradoras das bordas da cidade.
Quais estereótipos vocês vêm desconstruindo (ou tentando desconstruir) a partir do trabalho com o “Nós”?
Ela é retratada de forma genérica, estereotipada, estigmatizada, apenas por ser da periferia. Por sua localização geográfica, acreditam que ela se expressa, fala e se veste apenas de uma forma. Os meios de comunicação de massa ou grande mídia, como dizemos, traz em seus anúncios, novelas e comerciais um único tipo de mulher da periferia, sempre é a empregada doméstica ou a piriguete. Somos empregadas domésticas, sim, somos também piriguetes, mas somos várias outras também. Somos a mãe, a tia, a irmã, a mulher guerreira desde o nascimento. Antigamente, a mulher da periferia não tinha acesso à faculdade, não trabalhava além do serviço que já realiza diariamente em casa. Essa realidade, no entanto, vem mudando em todas as classes sociais, com cargos até maiores que o dos homens. Mas ainda ganha menos que eles. Isso é um desafio a ser enfrentado. Ela vem alcançando espaço, mas sempre com a necessidade de mostrar que é capaz, mesmo vindo de um lugar distante. É preciso explicar que a questão da moradia longínqua vem acompanhada de pré-conceitos. ‘Se mora na periferia, não teve estudo. Vai chegar atrasada. Não sabe falar direito’, podemos ouvir por aí.
Neste dia 8 vocês completam um ano, qual foi a melhor parte dessa experiência?
Tem sido ouvir o que essas mulheres têm para contar, o quão rico é essa vivência. Do quanto elas ficam felizes em poder contar suas histórias, de terem um espaço dedicado a elas. Tivemos inclusive leitoras que colaboraram com seus textos e relatos e foram publicados no site. O melhor de tudo é conseguirmos nos aproximar e ouvir essa riqueza. Um momento muito rico foi o lançamento do nosso site, em que as entrevistadas do especial sobre moradia foram participar e contar suas trajetórias até chegarem às ocupações. Elas falaram de dificuldades, como lidar com casos de violência, a preocupação de deitar e não dormir pensando numa possível desapropriação. Muitas falas foram interrompidas por lágrimas de emoção ao lembrarem de suas vivências. Uma delas disse que várias jornalistas a procuram para a entrevista, e quando as integrantes do ‘Nós’ apareceram ela estava desconfiada. Mas dessa vez ela mesma pode vir contar sua história diante das pessoas e foi diferente. Esse contato que tivemos vem do nosso diferencial de sermos todas moradoras da periferia e conhecermos essas realidades, sendo pessoas que olham as outras frente a frente, e não de cima.
O que significou para vocês todo esse processo de atuação do coletivo?
Esse um ano foi intenso, um período de conhecimento e consolidação das integrantes e do trabalho. Para lançarmos o site fomos a campo, para iniciar a produção do conteúdo e encontrar com aquelas que queremos dar voz. Com a página no Facebook tivemos um alcance interessante de mulheres que encontraram um espaço com publicações que falavam delas e para elas. Fomos convidadas a participar de encontros, seminários e eventos que envolviam comunicação, periferia, questões de gênero e raça. Percebemos o quanto precisamos de mais espaços e de mais participação de todos nessas discussões. E todo esse processo significou para o “Nós” que realmente as mulheres querem ser ouvidas e têm muito o que contar.
Como tem sido o diálogo e a relação com a comunidade? Como as mulheres receberam o coletivo?
Além dos números de acesso do nosso site e página no Facebook, podemos perceber que estamos, pouco a pouco, chegando até as mulheres da periferia. Percebemos isso a partir dos comentários das matérias publicadas no site e também nas redes sociais, que demonstram desde concordância com os conteúdos até o envio de histórias, artigos e poesias pessoais. Além disso, movimentos feministas, em sua grande parte da periferia, vêm procurando o Coletivo para participar de encontros temáticos e palestras, aumentando nossa capilaridade.
Quais são os sonhos/desejos do “Nós, Mulheres da Periferia” daqui para frente?
Pretendemos estar cada vez mais envolvidas com as mulheres das periferias de vários Estados, não só de São Paulo. Queremos ter nosso espaço para debates, encontros, rodas de conversa, reuniões, onde as mulheres possam se sentir à vontade até mesmo para dançar, desenhar, escrever. Além de visitarmos outros espaços nas periferias, teremos o nosso: uma central da mulher da periferia, uma referência, para que saibam onde encontrar o coletivo. Até porque sabemos que muitas mulheres, ainda, não têm acesso à internet ou até preferem um bate papo pessoalmente.
Thaís Santana, 24, é correspondente de Anhanguera
@thastn
thaissantana.mural@gmail.com
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