Quem são os consumidores de cultura geek das periferias de São Paulo?
Eduardo Silva
São 15h de um domingo. Na casa do advogado Yuri Paes, 31, ele e mais sete amigos se reúnem para jogar uma partida de RPG (Role-Playing Game) de mesa. O jogo de interpretação de personagens é um hobby frequente para os amigos que moram nos distritos vizinhos de Jardim Helena e Itaim Paulista, no extremo leste de São Paulo.
“Às vezes nós só temos tempo de nos reunir aos fins de semana. Quando é assim, temos um horário para começar e terminar. Mas se estamos jogando com mais tempo, como em um feriado prolongado, nem vemos a hora passar”, conta.
No jogo, cada participante cria e interpreta um personagem dentro de regras pré-determinadas. A condução pode ser feita em qualquer lugar, até mesmo em espaços públicos ou de modo online, via videochamada.
“Via de regra, a gente se reúne na casa de alguém para jogar. De vez em quando, você ainda vê um pessoal jogando em praça de alimentação de shopping, mas eu não me sinto confortável assim. O nerd, de um modo geral, não se sente muito à vontade quando está exposto”, afirma o advogado, que joga RPG há oito anos.
Única mulher da mesa, a estudante de medicina veterinária Giovanna Almeida, 19, começou a jogar há cinco anos, quando estava no primeiro ano do ensino médio. Ela diz que é mais comum encontrar jogadoras mulheres no RPG online do que no jogo de mesa.
“Não por uma questão de machismo, mas porque é mais difícil encontrar um grupo de pessoas que jogam RPG de mesa. No online, sempre tem um volume maior de jogadores”, diz. Entre as principais escolhas estão o “Dota 2” e “League of Legends”.
“Ser nerd hoje em dia é legal. Os animes e os jogos estão se tornando mais deslocados, mais aceitos socialmente. Mas durante muito tempo eles não foram. Muitas vezes eu me sentia isolado porque só eu gostava”, segue Paes.
NA PERIFERIA
Yuri começou a se interessar pelo “universo geek” nos anos 1990. Na época, muitas crianças e adolescentes foram apresentados aos chamados animes (desenhos produzidos no Japão), exibidos na TV aberta brasileira. “Eu assistia muito ‘Cavaleiros do Zodíaco’, ‘Sailor Moon’ e ‘Fly – O Pequeno Guerreiro’. Tenho até hoje a coleção dos mangás de ‘Samurai X’ e ‘Yu Yu Hakusho’”, conta.
Boa parte dos canais brasileiros nos anos 1990 apostaram nesse tipo de desenho. A extinta Rede Manchete trouxe “Os Cavaleiros do Zodíaco” (1994), “Sailor Moon” (1996) e “Yu Yu Hakusho” (1997). O SBT estreou “Dragon Ball”, em 1996, e a Rede Bandeirantes, em 1999. A Rede Record teve “Pokémon” (1999) como concorrente de “Digimon” (2000) e “Sakura Card Captors” (2001), exibidos pela Rede Globo.
“Hoje em dia, com a Netflix e o Crunchyroll [plataforma online], ficou mais fácil assistir a animes. Antes, quase ninguém tinha internet em casa, então você só assistia quando uma emissora de TV transmitia ou então precisava comprar as fitas VHS dos animes que gostava”, continua.
Além das animações japonesas, a Netflix passou a apostar nas adaptações de animes e games. Em 2017, o serviço de streaming produziu “Fullmetal Alchemist” e “Death Note”. No mesmo ano, o jogo “Castlevania”, produzido para o Nintendo no final dos anos 1980, ganhou uma adaptação com seis episódios.
O cinema também tem destaque quando se fala em popularização da cultura geek. Em 2018, duas das três maiores bilheterias do Brasil faziam parte do universo nerd: “Os Vingadores – Guerra Infinita” e “Pantera Negra”, ambos da Marvel Studios, com a primeira e terceira maiores arrecadações. O segundo lugar ficou com Os Incríveis, da Disney Pixar.
POPULARIZAÇÃO
No domingo (24) será realizado a primeira edição da Perifacon, a “Comic Con” da favela. O evento pretende atender a demanda de uma geração de moradores das periferias que são apaixonados pela chamada cultura geek.
Houve forte popularização de encontros voltados para o público nerd nos últimos anos. A Comic Con Experience, que se tornou um dos principais eventos destinados aos geeks, gamers e otakus, reuniu 260 mil pessoas ano passado. Os ingressos custavam entre R$ 79 e R$ 379 (meia-entrada).
“Antes, ocorriam eventos geeks uma ou duas vezes ao ano. Hoje, você vê eventos quase todo mês”, comenta Daiane Ramos, 28, moradora de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Em 2007, ela fez seu primeiro cosplay no Anime Friends, evento voltado para fãs de animes e mangás. O hobby consiste em se fantasiar de um personagem da cultura pop japonesa. Desde então, foram oito fantasias.
“O custo depende do personagem que você quer fazer, pois o mais simples e, óbvio, o mais barato, fica em torno de R$ 300. Mas tem cosplay que fica acima de R$ 1 mil. Tem pessoas que gostam de deixar bem próximo ao personagem”, conta Daiane.
As peças geralmente são compradas de fora, encomendadas pela Ali Express, ou por meio de contato com “cosmakers” – profissionais responsáveis pela confecção das fantasias e acessórios.
Em 2016, Raissa Gomes, 27, moradora do Itaim Paulista, criou o blog “Mamãe e Geek”. A plataforma tem o objetivo de unir o mundo da maternidade e o mundo geek, como ela mesma descreve.
“Acabei notando que não me encaixava no mesmo padrão das outras mães ao meu redor, por ter um gosto diferente para entretenimento. Apesar disso, sabia que existiam outras mulheres como eu, então decidi criar o blog e fazer contato com mães e pais que se identifiquem com cultura geek”, diz.
Fã de livros, filmes e jogos de ficção científica, ela frequenta eventos com o marido e os dois filhos. Participou das edições de 2017 e 2018 do BGS (Brasil Game Show) e da Bienal do Livro, no ano passado. Quanto a eventos próximos de casa, Raissa diz que não são comuns.
“Infelizmente, ainda não vi nenhum evento relacionado à cultura geek aqui na zona leste. Cerca de 10 anos atrás, a gente ainda conseguia encontrar algo relacionado à exibição de animes nas unidades dos CEUs [Centros Educacionais Unificados], mas parece que isso foi se perdendo com o tempo”, fala.
“A periferia também gosta e quer consumir esse tipo de entretenimento.”
Eduardo Silva é correspondente de São Miguel Paulista
eduardosilva@agenciamural.org.br
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