Fake news atrapalham o combate à Covid-19 nas periferias
Vagner de Alencar
Antes de começar este texto, recorri a um dos grupos de família, no WhatsApp, para saber qual havia sido a última notícia falsa recebida por lá. Em instantes, uma tia me encaminha uma imagem de máscaras verdes sobre uma mesa, acompanhada por um áudio de 57 segundos.
A voz, em tom imperativo, é de um homem “informando” (para não dizer desorientando) outras pessoas a não receberem máscaras doadas:
“Boa noite, essa máscara já chegou da Argentina. Tô avisando a todos que não usem isso. Quem usar, com certeza, vai morrer. Amanhã já estará em Cariacica, Grande Vitória, Vila Velha, todos esses lugares. Eles vão entregar isso na fila de banco, nos postos de saúde. Ela vem com o número da besta: 666. Veio com essa cor aí, verde. Então nem se aproxima disso. E avisa todo mundo, seus contatos, por favor, com urgência. Se for para ficar até a noite inteira espalhando, então espalha.”
O pedido parece ter funcionado. O áudio do homem, aparentemente do Espírito Santo (por conta das cidades citadas), chegou aos ouvidos de minha tia, em Paraisópolis, na zona sul de São Paulo.
Na segunda maior favela de São Paulo, desde o começo da pandemia, uma megaoperação foi montada por lideranças locais para combater o coronavírus. Recentemente, até mesmo duas escolas públicas se tornaram hospitais de campanha para abrigar moradores infectados pela Covid-19.
Embora assistam, a olho nu, a toda essa mobilização na favela, uma parcela da população acreditou na fake news (fortemente pautada pela religião). Uma profissional de saúde da comunidade me relatou ter tido máscaras dispensadas por moradores por conta da mensagem.
Enquanto o noticiário se esforça para informar e orientar a população sobre cuidados e prevenção (reportagens têm desmentido essas informações sobre as máscaras), o poder de notícias falsas como essa segue na direção contrária à luta pela sobrevivência e contribui para potencializar ainda mais as mortes nas periferias.
Segundo uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira (4) pela Avaaz, o Brasil é o país que mais acredita em fake news no mundo. Cerca de 100 milhões confiaram em informações mentirosas sobre a Covid-19, por exemplo.
Ainda de acordo com o levantamento, o WhatsApp e o Facebook são, respectivamente, as duas maiores plataformas propagadoras de notícias falsas. Na primeira, 6 em cada dez pessoas já receberam esse tipo de conteúdo, enquanto na segunda foram cinco a cada dez.
A situação preocupa enquanto o número de casos avança para as bordas da cidade.
Nas periferias paulistanas, o número de mortes pela Covid-19 só cresce. Nos últimos 15 dias, houve um aumento de 94%, na soma dos casos suspeitos e confirmados, segundo a Secretaria Municipal da Saúde.
Os distritos da Brasilândia e Sapopemba lideram o total de mortos, com 100 óbitos, enquanto nos 20 distritos mais ricos, nenhum chegou a 50 mortes.
Se as populações periféricas estão sendo as maiores vítimas do vírus, sobretudo por conta da desigualdade agora mais latente, a desinformação certamente só ajudará a potencializar ainda mais mortes.
De volta ao grupo de WhatsApp da família, o retrato do alastramento dessas notícias continua. Uma prima me encaminha outra fake news. Dessa vez, sobre relação entre as máscaras e o banco começou nas últimas semanas.
Essa mesma fake news dizia que o aumento dos casos de Covid-19 se daria pelas ‘máscaras contaminadas’ e que colocariam a culpa nas filas para o saque do auxílio emergencial.
Como se o perigo real não fosse ir para a fila sem máscara e a aglomeração que milhares de moradores das periferias têm enfrentado para conseguir os R$ 600. Veja só um trecho da mensagem, também gravada por um homem:
“Não vão pegar o dinheiro. Tá passando perrengue, deixa o banco esvaziar as filas. Não pega máscara dada pelo governo. A partir da semana que vem, quando chegar máscaras da China, povo brasileiro vai morrer igual mosca. Isso é tudo programado. Quem puder, divulga esse áudio. Se a gente espalhar pra 50 pessoas que a gente gosta, já vai estar ajudando.”
Felizmente minha prima descartou a desinformação e continua protegendo a si e aos filhos. O mesmo não pode ser dito em relação a outros milhões de brasileiros, que muitas vezes se apoiam em notícias falsas por descrença ou fanatismo religioso.
Vagner de Alencar é diretor de jornalismo da Agência Mural de Jornalismo das Periferias
vagnerdealencar@agenciamural.org.br
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