Antes invisíveis, agora Morumbi quer muros reais com Paraisópolis
Vagner de Alencar
Sem nenhum refúgio de lazer em Paraisópolis, segunda maior favela de São Paulo, minha infância se resumia a implorar aos meus pais um passeio no Parque do Ibirapuera. Naquela época, o único lugar possível. Para não dizer acessível.
Domingo ensolarado. Na mochila, lanches e salgadinhos, refrigerante e água. No “busão” Terminal Capelinha sentido Largo São Francisco, crianças sempre por debaixo da catraca. Meia hora depois, lá estávamos naquela área de 140 hectares. Como em caravana, às vezes ao lado de uma dezena de amigos e familiares.
No Ibirapuera, havia playgrounds, pistas de jogos com gente correndo de um canto para o outro, bicicletas individuais ora coletivas, passeio com animais de estimação e fazendo piqueniques.
Ao contrário de mim, muitas famílias de Paraisópolis nunca puderam pisar no parque, seja por conta do preço da passagem ou até mesmo por desconhecimento.
Segundo dados da pesquisa “Viver em São Paulo: Cultura na Cidade”, de 2019, realizada pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o Ibope, 30% dos paulistanos não frequentam espaços culturais por causa da distância.
Essa situação finalmente pode mudar graças a um novo espaço de lazer na região. Mas o que poderia ser apenas motivo de comemoração deu lugar a segregação.
Após uma reivindicação de mais de 10 anos, os cerca de 100 mil moradores de Paraisópolis se vêem, pela primeira vez, diante de um parque para chamar de seu.
Criado por lei, a primeira fase de construção do parque foi concluída em 2013. Houve paralisação das obras, mas agora a previsão é que seja aberto em outubro.
A área com mais de 68 mil metros quadrados fica em um terreno na rua Silveira Sampaio, próximo à AMA Paraisópolis, e na divisa entre o bairro do Morumbi e a favela, o que incomoda parte dos vizinhos.
Sem simbolismos, o rico bairro do Morumbi quer construir muros reais para se separar de Paraisópolis. Os muros ainda não estão de pé mas já existem.
Prova disso, na última semana, em uma carta enviada a Eduardo de Castro, secretário municipal do Verde e do Meio Ambiente, moradores do Jardim Vitória Régia, que batiza a associação homônima, defenderam a construção de um muro de três metros para impedir o acesso dos vizinhos do bairro pobre ao lado rico.
Em Paraisópolis, o acesso a espaços públicos e culturais ainda é escasso. Em geral, o que existe é fruto de ação da própria comunidade. Alguns jovens deram vida a um sarau, com apresentações mensais, antes da pandemia. Na biblioteca comunitária Becei, milhares de livros estão disponíveis para empréstimo.
No Forró da Juliana, a casa de show com o ritmo era garantia de diversão para uma população formada por mais de 80% de nordestinos.
Sem contar o baile da DZ7, que milhares de jovens aos fins de semana no centro da comunidade — palco inclusive de uma das maiores tragédias no país, após as mortes de nove adolescentes encurralados pela PM num beco da favela.
Encurralamento vivido pelos moradores desde a ausência de espaços públicos de lazer a baixa infraestrutura em serviços básicos. Com o avanço do coronavírus, a preocupação foi evidente.
Enquanto o Morumbi pensa em criar muros, Paraisópolis se debruça em soluções para controlar o vírus, que agora dá contornos ainda mais reais, para não dizer cruéis, para além da foto viralizada dos prédios do Morumbi com uma piscina por andar defronte a casas sem reboco.
A favela tem controlado a Covid-19 de maneira mais efetiva em comparação à média municipal.
Em levantamento divulgado em 23 de junho pelo Instituto Pólis, organização da sociedade civil voltada ao direito à cidade, a comunidade apresentava em 18 de maio uma taxa de mortalidade por Covid-19 de 21,7 pessoas por 100 mil habitantes.
O índice ficou abaixo da média municipal (56,2) e de outros distritos vulneráveis, como Pari (127), Brás (105,9) e Brasilândia (78). A média menor pode ser fruto de ações da própria comunidade, que tem presidentes de rua monitorando moradores com suspeita de contaminação e voluntários para entrega de cestas básicas.
Para Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores de Paraisópolis, sempre houve muros invisíveis que separam Paraisópolis do Morumbi.
“São muros de ar que, neste momento, estão cada vez mais evidenciados durante a pandemia, por meio da desigualdade, da má distribuição de renda, das más condições de moradia e falta de acesso às questões básicas de saúde e alimentação”.
Para ele, esperava-se vir dos vizinhos ajuda pela cobrança do poder público, não a cobrança por um muro. “Só existe um Morumbi bom, quando a situação de Paraisópolis estiver melhor”, reforça.
Segundo a carta escrita pelos moradores da associação do Morumbi, o muro ajudaria a minimizar os ruídos ao lado. Mas o barulho ouvido foi apenas o da desigualdade, ecoado em sua máxima potência.
Certamente acomodadas em suas mansões e apartamentos com piscinas privativas e atrações, na carta enviada à prefeitura a lista de desejos incluía restrição de funcionamento do parque das 7h às 19h, sem direitos a piqueniques, circulação de veículos (até mesmo bicicletas) e de animais de estimação, além de “pessoas cujas atitudes agridam a moral e os costumes dos usuários do parque”.
A gente sabe quem são essas pessoas: àquelas com as quais, “infelizmente”, precisa-se conviver sem mais um muro de três metros de altura.
Em tempo, nesta segunda-feira (13), a Secretaria do Verde e Meio Ambiente comunicou em entrevista à imprensa que o muro não será construído e seguirá conforme o projeto inicial.
Que os muros invisíveis também deixem de existir.
Vagner de Alencar é cofundador e diretor de jornalismo da Agência Mural
VEJA TAMBÉM:
Combater o racismo também passa por ter mais jornalistas negros nas redações
Fake news atrapalham o combate à Covid-19 nas periferias
As periferias não podem se tornar a isca fácil pela audiência de uma tragédia anunciada